Os ArawetĂ© sĂŁo um povo tupi-guarani de caçadores e agricultores da floresta de terra firme. “Estamos no meio”, dizem os ArawetĂ© da humanidade. Habitamos a terra, este patamar intermediário entre os dois cĂ©us e o mundo subterrâneo, povoados pelos deuses que se exilaram no começo dos tempos. Os ArawetĂ© dizem viver agora “na beira da terra”: sua tradição fala de sucessivos deslocamentos a partir de algum lugar a leste (o centro da terra), sempre em fuga diante de inimigos mais poderosos. Toda sua longa histĂłria de guerras, mortes e fugas, e a catástrofe demográfica do “contato”, se nĂŁo se apagam da memĂłria arawetĂ©, nunca chegaram a diminuir seu Ămpeto vital e alegria.
Nome e população
O nome “ArawetĂ©”, inventado por um sertanista da Funai, nĂŁo significa nada na lĂngua do grupo. O Ăşnico termo que poderia ser considerado uma auto-denominação Ă©Â bĂŻde, que significa “nĂłs”, “a gente”, “os seres humanos”. Todos os humanos sĂŁo bĂŻde, mas os humanos por excelĂŞncia sĂŁo os ArawetĂ©: os outros povos indĂgenas e os ‘brancos’ (kamarĂŁ) sĂŁo awĂ®, “estrangeiros” ou “inimigos”.
A população imediatamente anterior ao contato era de pelo menos 200 pessoas. Devido Ă s condições em que o ‘contato’ com a Funai se realizou, a mortalidade causada por epidemias e desnutrição levou o grupo ao mĂnimo de 120 pessoas, em 1977. Em setembro de 1992 a população chegou a 206, alcançando assim o efetivo da Ă©poca prĂ©-contato. Em razĂŁo do relativo isolamento em que vivem (mais do que Ă assistĂŞncia dos ĂłrgĂŁos pĂşblicos competentes), nĂŁo tiveram grandes baixas demográficas devido a doenças estrangeiras atĂ© o segundo semestre de 2000, quando a população foi acometida por um surto de varicela (doença virĂłtica popularmente conhecida como catapora). Nesse ano, dados da Funasa registravam 278 Ăndios, dos quais pelo menos 218 foram acometidos pela epidemia, resultando em nove Ăłbitos.
Segundo depoimento de TarcĂcio Feitosa (membro do CIMI – Conselho Indigenista Missionário) ao ISA na Ă©poca, a morosidade do DSEI (Distrito Sanitário IndĂgena) de Altamira em tomar as devidas providĂŞncias facilitou o impacto da epidemia sobre a população. Desde entĂŁo, a população retomou seu crescimento e em maio de 2003, segundo dados da Funai, contava 293 pessoas, sendo trĂŞs recĂ©m-nascidos. A seguir, uma lista dos dados censitários disponĂveis sobre os ArawetĂ© desde o contato oficial:
Data/Fonte | Censo |
---|---|
27.07.76 [inf. LisbĂ´a, 1992] | 27 pessoas chegam ao Posto da Funai no Ipixuna |
04.09.76 [Diário João Evangelista de Carvalho] | 44 pessoas na aldeia próxima ao Posto |
Censo JEC de março 1977 [Müller et al., 1979: 24] | 120 pessoas |
Meados de 1977 [Censo JEC] (Arnaud, 1978: 10-11) | 119 pessoas (59 homens/60 mulheres) |
11.05.77 [Censo JEC] | 129 pessoas (61 homens/ 58 mulheres) |
17.06.77 [Censo JEC] | 120 pessoas (62 homens/58 mulheres) |
11.10.77 [Censo JEC] | 117 pessoas |
14.03.78 [Censo Funai] | 121 pessoas |
Julho de 1978 [Censo Funai] (MĂĽller op.cit.: 25) | 122 pessoas |
Meados de 1979 [Censo MĂĽller] (op.cit.: 28) | 133 pessoas (71 homens/62mulheres) |
02.01.80 [Censo Funai] | 136 pessoas (66 homens/70 mulheres) |
25.04.80 [Censo Funai] | 138 pessoas (66 homens/72 mulhres) |
Junho de 1981[Censo Eduardo Viveiros de Castro] | 130 pessoas (62 homens/68 mulheres) |
Abril de 1982 [Censo Eduardo Viveiros de Castro] | 136 pessoas (63 homens/73 mulheres) |
Fevereiro de 1983 [Censo Eduardo Viveiros de Castro] | 136 pessoas (64 homens/72 mulheres) |
19.12.83 [Censo Funai] | 139 pessoas |
Dezembro de 1985 [Censo Funai] | 153 pessoas |
03.11.86 [Censo Funai] | 160 pessoas |
16.06.87 [Censo Funai] | 162 pessoas (85 homens/77 mulheres) |
1988 [Censo Eduardo Viveiros de Castro] | 168 pessoas |
15.12.89 [Censo Funai] | 181 pessoas (91 homens/90 mulheres) |
04.04.92 [Censo Eduardo Viveiros de Castro] | 195 pessoas (92 homens/103 mulheres) |
1992 [Censo Lo Curto-Funai de setembro] | 205 pessoas (95 homens/110mulheres) |
2000 [Censo Funasa de novembro] | 278 pessoas |
12.05.2003 [Censo Funai] | 293 pessoas |
LĂngua
A lĂngua arawetĂ© pertence Ă grande famĂlia Tupi-Guarani. É possĂvel que os ArawetĂ©, como vários outros grupos tupi da regiĂŁo, sejam os descendentes da tribo dos Pacajás, objeto de intensa atividade missionária por parte dos jesuĂtas durante o sĂ©culo XVII. As crĂ´nicas missionárias registram que parte desse numeroso povo resistiu Ă catequese, retornando Ă floresta. Mas a lĂngua arawetĂ©, se comparada Ă s lĂnguas faladas por seus vizinhos tupi-guarani mais prĂłximos (os AsurinĂ do Koatinemo, os ParakanĂŁ, os AsurinĂ do Trocará, os SuruĂ, os TapirapĂ©), todas elas bastante semelhantes entre si, mostra-se bastante diferenciada. Isto sugere que a separação dos ArawetĂ© foi mais antiga, ou mesmo que eles podem ter vindo de outra regiĂŁo do Brasil.
Ainda há uma parte significativa da população araweté que não fala Português. E, dentre os falantes, a maioria não possui fluência.
O arawetĂ© nĂŁo Ă© uma lĂngua simples de se aprender: sua prosĂłdia Ă© fortemente nasal, o ritmo Ă© rápido, e há sons de difĂcil reprodução pelos falantes nativos do portuguĂŞs. A sintaxe e a morfologia sĂŁo bastante diferentes das lĂnguas indo-europĂ©ias: há várias sĂ©ries de pronomes pessoais, há aspectos verbais sem correspondente diretos no portuguĂŞs… Por outro lado, Ă© fácil reconhecer na lĂngua arawetĂ© numerosas palavras que o tupi-guarani deixou no portuguĂŞs falado no Brasil, seja no vocabulário comum, seja em falares regionais, seja nos topĂ´nimos (nomes de lugares).
A lĂngua arawetĂ© ainda nĂŁo foi estudada por especialistas; a grafia empregada nestas páginas nĂŁo respeita integralmente o alfabeto fonĂ©tico internacional, mas procura ser consistente. Os valores sonoros aproximados das letras sĂŁo: as vogais “a” e “i” soam como no portuguĂŞs brasileiro (o “e” sempre aberto); o “i” soa como um “u” pronunciado sem arredondamento dos lábios; o “ĂŻ” soa como no inglĂŞs “bit”, mas produzido com a ponta da lĂngua voltada para baixo; o “o” soa como no inglĂŞs “but”; o til indica uma vogal nasal (todas as vogais podem ser nasalizadas; nestas páginas, por dificuldades em codificar a fonte, o “i” nasal será grafado como “Ă®”).
As consoantes “p”, “b”, “m”, “n” soam aproximadamente como em portuguĂŞs; o “ñ” como o “nh” em portuguĂŞs; o “k” como o “c” de “casa”; o “t” como em “tudo”, mesmo diante de “i”; o ” d” soa como “tch” (como o “t” de “tio”, no falar carioca); o “c” como “ts”; o “r” como em “caro”, mesmo em começo de palavra; o “d” como o “th” do inglĂŞs “that”; o “d” como em “body”, na pronĂşncia americana; o “y”, o “w” e o “h” soam como no inglĂŞs “yes”, “work”, “home”. O sinal ‘ entre duas vogais indica uma oclusĂŁo glotal suave, isto Ă©, uma pequena pausa entre os dois sons separados por ele. A vogal tĂ´nica da maioria das palavras Ă© a Ăşltima; apenas quando este nĂŁo Ă© o caso, indica-se o acento por um traço sob a vogal: assim, por exemplo, bĂŻde se pronuncia “bĂŻdĂ©“, e MaĂŻÂ se pronuncia “Máï“.
 Localização
Os ArawetĂ©, em 2021, vivem em 23 aldeias na regiĂŁo do igarapĂ© Ipixuna, afluente da margem direita do MĂ©dio Xingu. O Ipixuna Ă© um rio de águas negras, encachoeirado, que corre em um leito rochoso na direção Sudeste/Noroeste. A vegetação dominante na bacia do Ipixuna Ă© a floresta aberta com palmeiras, onde as árvores raramente ultrapassam 25 metros. Nos arredores da aldeia há extensas áreas de “mata de cipĂł”, onde lianas e plantas espinhosas tornam a caminhada difĂcil. O terreno Ă© pontilhado de irrupções granĂticas que em seu topo se cobrem de cactos e bromĂ©lias. A caça Ă© abundante, dada a grande quantidade de árvores frutĂferas, que atraem os animais O regime de chuvas Ă© bem marcado, com uma estação seca que se estende de abril a novembro, e uma chuvosa nos meses restantes. Entre agosto e novembro o rio se torna impraticável, expondo extensos lajeiros e formando poços de água estagnada propĂcios Ă pesca.
De 1978 a 2001, os ArawetĂ© habitaram em uma outra aldeia Ă beira do Ipixuna, a alguns quilĂ´metros da aldeia atual. Desde que se deslocaram das águas do Bacajá em direção ao Xingu, eles circulam por uma área compreendida entre as bacias dos rios Bom Jardim, ao sul, e Piranhaquara, ao norte, que inclui os rios CanafĂstula, Jatobá e Ipixuna. A Terra ArawetĂ© Ă© contĂgua a trĂŞs outras: TI Apyterewa (dos Ăndios ParakanĂŁ) ao sul, TI Koatieno (dos AsurinĂ) ao norte e nordeste e TI Trincheira-Bacajá (dos KayapĂł-Xikrin) a leste, tendo o rio Xingu como limite oeste.
HistĂłrico do contato
Em meados da dĂ©cada de 60, os ArawetĂ© se deslocaram das cabeceiras do rio Bacajá, a sudeste, em direção ao Xingu, no Estado do Pará. Eles eram oficialmente desconhecidos atĂ© o começo da dĂ©cada de 1970. Seu ‘contato’ pela Funai data de 1976, quando buscaram as margens do Xingu fugindo do assĂ©dio dos ParakanĂŁ, outro grupo tupi-guarani.
É possĂvel garantir que eles moram há muitos anos, talvez alguns sĂ©culos, na regiĂŁo de florestas entre o mĂ©dio curso dos rios Xingu e Tocantins. Embora fossem considerados, atĂ© o contato em 1976, como “Ăndios isolados”, o fato Ă© que os ArawetĂ© conhecem o homem branco há muito tempo. Sua mitologia se refere aos brancos, e existe um espĂrito celeste chamado “PajĂ© dos Brancos”; eles utilizam há muito tempo machados e facões de ferro, que pegavam em roças abandonadas de moradores ‘civilizados’ da regiĂŁo; e sua tradição registra vários encontros, alguns amistosos, outros violentos, com grupos de kamarĂŁÂ na floresta.
A histĂłria dos ArawetĂ© tem sido, pelo menos desde o inĂcio do sĂ©culo XX, uma histĂłria de sucessivos conflitos com tribos inimigas e de deslocamentos constantes. Eles saĂram do Alto Bacajá devido a ataques dos KayapĂł e dos ParakanĂŁ. Por sua vez, ao chegarem ao Ipixuna e demais rios da regiĂŁo (Bom Jardim, Piranhaquara), afugentaram os AsurinĂ ali estabelecidos, que acabaram se mudando para o rio Ipiaçava, mais ao norte. Em 1970, com a construção da rodovia TransamazĂ´nica, que passava por Altamira (a cidade mais prĂłxima), o governo brasileiro começou um trabalho de “atração e pacificação” dos grupos indĂgenas do mĂ©dio Xingu. Os ArawetĂ© começaram a ser notados oficialmente em 1969. Em 1971 a Funai estabeleceu a “Frente de Atração do Ipixuna”, que manteve contatos esporádicos com os ArawetĂ© atĂ© 1974, sempre sem conseguir visitar suas aldeias. Nesta Ă©poca o grupo vivia dividido em dois blocos de aldeias, um mais ao sul, na bacia do Bom Jardim, outro ao norte, no Alto Ipixuna.
Em janeiro de 1976, ataques realizados pelos ParakanĂŁ levaram os ArawetĂ© de ambas as regiões a procurar as margens do Xingu, resolvidos a “amansar” (mo-kati ) os brancos (pois eles nĂŁo acham que foram ‘pacificados’ pelos brancos, mas sim o contrário). A Funai veio encontrá-los lá em maio daquele mesmo ano, acampados precariamente junto Ă s roças de alguns camponeses, famintos e já doentes devido ao contato com os brancos do “beiradĂŁo” (que Ă© como as terras da margem do Xingu sĂŁo chamadas pela população regional). Em julho, os sertanistas da Funai decidem levar aquela população doente e fraca em uma caminhada pela mata atĂ© um Posto que havia sido construĂdo no Alto Ipixuna, prĂłximo Ă s antigas aldeias do grupo. Foi uma caminhada de mais ou menos 100 km, que durou 17 dias: pelo menos 66 pessoas morreram no percurso. Com os olhos fechados por uma conjuntivite infecciosa que haviam contraĂdo no “beiradĂŁo”, as pessoas nĂŁo enxergavam o caminho, se perdiam na mata e morriam de fome; crianças pequenas, subitamente ĂłrfĂŁs, eram sacrificadas pelos adultos desesperados; muita gente, fraca demais para caminhar, pedia para ser deixada para morrer em paz.
NĂŁo se sabe quantos começaram a caminhada, mas apenas 27 chegaram junto com os sertanistas que lideravam a marcha; o restante veio chegando aos poucos. Alguns Ăndios se desviaram, no caminho, para as aldeias antigas, ali permanecendo algumas semanas; mas logo um novo ataque parakanĂŁ fez toda a população arawetĂ© que sobreviveu Ă caminhada e aos inimigos se juntar no Posto da Funai. Em março de 1977, o primeiro censo feito pela Funai contou 120 pessoas. Os ArawetĂ© me desfiaram os nomes de 77 pessoas que desapareceram no perĂodo entre sua chegada no Xingu, em janeiro de 1976, e sua chegada no Posto Velho, em julho daquele ano; trĂŞs dessas morreram no Ăşltimo ataque parakanĂŁ: 73, portanto, foram vĂtimas do contato e da desastrosa caminhada – 36% da população total Ă Ă©poca.
Em 1978, os ArawetĂ© se mudaram, juntamente com o Posto da Funai, para um sĂtio mais prĂłximo da foz do Ipixuna, onde residiram atĂ© 2001. Nos primeiros anos, viver com os brancos nĂŁo era muito fácil. A interação entre Ăndios e funcionários da Funai se fundava em uma sĂ©rie de mal-entendidos culturais, em expectativas estereotipadas e em demandas contraditĂłrias. Era muito comum a emissĂŁo professoral de juĂzos sobre o ‘caráter’ tĂpico dos ArawetĂ©: que eram preguiçosos, que passavam fome por descuido e imprevidĂŞncia (e no entanto a população era visivelmente bem nutrida), que nĂŁo eram solidários entre si, que sĂł falavam e pensavam em sexo (o que era sublinhado, na verdade, por ser um dos Ăşnicos assuntos em que a vida dos Ăndios interessava os brancos); e assim por diante. Havia toda uma sĂ©rie de procedimentos de ‘infantilização’ dos Ăndios, pequenos ritos de degradação, como os exames mĂ©dicos em pĂşblico, censuras sobre a ‘pouca higiene’ de certas práticas tradicionais, o costume de se lhes pĂ´r apelidos pejorativos. SĂł ouvi serem elogiados pelo temperamento cordato, alegre e (deveras!) paciente. Mas na verdade tudo isso nĂŁo era apenas (Ă s vezes, de forma alguma) uma questĂŁo de ‘má vontade’ ou de brutalidade desse ou daquele funcionário. Havia um sistema; esse era o modo de articulação entre Ăndios e brancos.
Os ArawetĂ© dependiam entĂŁo, como dependem mais ainda hoje, de uma sĂ©rie de bens e serviços oferecidos pelo Posto: combustĂvel, sal, fĂłsforos, panelas, roupas (para os homens), sabĂŁo, pilhas, lanternas, facas, machados, facões, ferramentas, tesouras, pentes, espelhos, açúcar, Ăłleo de cozinha, espingardas, munição, remĂ©dios.
Em meados de 1988, os ArawetĂ© e o chefe do Posto (Benigno Marques, hoje diretor da Administração da Funai de Altamira) encontraram e apreenderam uma grande quantidade de mogno que havia sido derrubada em suas terras por duas companhias madeireiras. ApĂłs uma nebulosa negociação da Administração da Funai em Altamira com estas madeireiras, os ArawetĂ© e os ParakanĂŁ – isto Ă©, o PI Ipixuna e o PI Apyterewa – acabaram recebendo, em janeiro de 1989, uma razoável quantidade de dinheiro Ă guisa de ‘indenização’ pela madeira roubada.
Embora a maior parte do dinheiro tenha sido confiscada pelo Governo Collor em março daquele ano, os trĂŞs meses em que ele esteve disponĂvel foram suficientes para uma mudança radical nas condições do sistema Posto/aldeia. Por um lado, várias melhorias importantes foram feitas no equipamento do Posto IndĂgena: nova enfermaria, motores para transporte e geração de energia, a aquisição de um barco com alta capacidade de carga, ferramentas etc. Por outro lado, os ArawetĂ© passaram a ter um acesso bastante amplo a uma quantidade de mercadorias que antes eram de obtenção difĂcil, demorada e limitada. Proliferaram as espingardas, panelas, machados, lanternas, pilhas, roupas, tabaco…
A partir de meados de 1989, a situação começou a piorar, com o confisco da caderneta de poupança ‘dos ArawetĂ©’. Nessa Ă©poca, um mĂ©dico italiano, Aldo Lo Curto, encantou-se pelo grupo e passou a investir na área alguns dos recursos que levanta em seu paĂs de origem, por meio de palestras e exposições sobre os Ăndios brasileiros. Isso permitiu a contratação de uma enfermeira e de uma professora, e a compra de alguns equipamentos para o posto. Mas a manutenção da pauta de consumo do grupo, elevada apĂłs a entrada do dinheiro da madeira, permaneceu um problema. Com a aguda recessĂŁo do perĂodo Collor, e especialmente com o desmonte da máquina administrativa federal, a Funai mergulhou em uma situação de insolvĂŞncia. Com isso, os ArawetĂ© ficaram reduzidos Ă ajuda de Lo Curto e a arranjos de emergĂŞncia entre a chefia do PI Ipixuna e a Funai de Altamira. Começaram a faltar alguns itens essenciais, como remĂ©dios, combustĂvel e munição. Essa foi a situação que encontramos em 1991, quando visitei o Ipixuna, junto com a equipe do Cedi.
Os Araweté perdidos
Em setembro de 1987, os KayapĂł-Xikrin da aldeia CatetĂ©, a centenas de quilĂ´metros a sudeste do Ipixuna, do outro lado da Serra dos Carajás, atacaram um pequeno grupo de Ăndios desconhecidos, matando um homem e um menino, capturando duas mulheres e outro menino pequeno. Um mĂ©dico da Funai que visitava a aldeia do CatetĂ© reconheceu a pele branca e os olhos castanho-claros dos ArawetĂ©, bem como os caracterĂsticos brincos de pena usados pelas mulheres. Logo se soube que um homem mais velho havia permanecido na mata, tendo conseguido fugir do ataque. Avisados pelo rádio, os ArawetĂ© mandaram dois emissários (e o chefe do PI Ipixuna) para resgatar seus parentes perdidos, sem terem a menor idĂ©ia de quem poderiam ser. As negociações foram complicadas; os Xikrin exigiram vários bens em troca dos prisioneiros, mas no fim tudo se resolveu. Em seguida, os ArawetĂ© foram em busca do velho. Logo o encontraram; no começo ele resistiu a qualquer aproximação, atirando flechas contra o pequeno grupo de resgate. Finalmente, contudo, terminou por reconhecer a lĂngua e se deixou aproximar. Ele e os cativos dos Xikrin foram levados para o Ipixuna para se juntar ao resto dos ArawetĂ©.
Na aldeia o mistĂ©rio se esclareceu. Eles eram os sobreviventes do grupo de IwarawĂŻ (o velho), que tinha se separado do resto da tribo há cerca de 30 anos atrás nas cabeceiras do Bacajá, quando IwarawĂŻ ainda era um rapaz. Durante um ataque kayapĂł, ele fugiu para a mata com uma moça – filha da irmĂŁ de sua mĂŁe – e com dois meninos pequenos, seus sobrinhos. Os ArawetĂ© acharam que eles haviam sido mortos ou capturados pelos KayapĂł. Na verdade, eles haviam se perdido do resto da tribo, que fugira dos KayapĂł na direção oposta, em direção Ă s águas do Ipixuna. IwarawĂŻ e sua irmĂŁ (no parentesco arawetĂ©, a filha da irmĂŁ da mĂŁe Ă© chamada de “irmĂŁ”), sozinhos, foram obrigados a casar; tiveram duas filhas, que se casaram com os dois meninos que haviam fugido tambĂ©m. Estas pessoas viveram completamente isoladas durante 30 anos, como uma miniatura da sociedade arawetĂ©. Era uma vida muito dura, sempre fugindo ao menor sinal de inimigos: sem tempo para esperar o algodĂŁo crescer, as mulheres substituĂram sua roupa tradicional por saias de casca de árvore; precisando estar sempre mudando de acampamento, nem sempre podiam plantar e colher milho, dependendo de farinha de coco-babaçu para sua alimentação.
Em fevereiro de 1988, IwarawĂŻ foi levado a Altamira para se tratar de uma grave pneumonia que havia contraĂdo logo apĂłs o contato. As duas mulheres, suas filhas, casaram-se na aldeia: Mitãñã-kãñî-hi e seu filho foram viver com um viĂşvo; PĂŻdĂ®-hi, respectivamente mulher e mĂŁe do homem e do menino mortos pelos Xikrin, casou-se com um primo solteiro. Embora cercados por seus parentes prĂłximos da aldeia, esses sobreviventes custaram a se acostumar Ă nova situação. Os outros ArawetĂ© os achavam estranhos: falavam com um sotaque estranho, haviam esquecido muitos dos usos e costumes tribais. Enquanto IwarawĂŻ estava em Altamira, suas armas ficaram guardadas na aldeia, e eram mostradas a todos. Seu largo arco, todo furado de chumbo das espingardas kayapĂł – ele o usara como escudo durante o ataque – havia morto muitos inimigos, Ăndios e kamarĂŁ, durante aqueles trinta anos. Suas flechas eram estranhas: tortas, sujas, com uma emplumação diferente da tradicional. Examinando estas armas, um anciĂŁo da aldeia declarou:
“Ă©, IwarawĂŻ estava quase se transformando em inimigo, estava esquecendo nosso modo de ser…”
As filhas e o neto de Iwarawï estão hoje completamente integrados à vida dos Araweté. Iwarawï morreu afogado nas águas do Xingu, em um estúpido acidente de barco, em agosto de 1988. Ele não teve tempo de voltar a viver com seus parentes perdidos.
TerritĂłrio e territorialidade
Apenas em fins de 1987, uma dĂ©cada depois do contado oficial, a Funai resolveu “interditar” uma área de 985.000 hectares, segundo os limites propostos em um relatĂłrio que encaminhei Ă quele ĂłrgĂŁo em 1982. Em maio de 1992, essa área foi delimitada, para fins de demarcação, por uma portaria do MinistĂ©rio da Justiça. A demarcação fĂsica do territĂłrio arawetĂ© foi feita por um convĂŞnio entre o CEDI (Centro EcumĂŞnico de Documentação e Informação, ONG embrionária do ISA) e a Funai, em julho de 1993. Os trabalhos foram executados entre junho de 1994 e maio de 1995 com recursos do governo austrĂaco destinados Ă conservação de florestas tropicais, concedidos durante a Eco 92. Em 1996, a TI ArawetĂ© foi homologada com a extensĂŁo de 940.900 hectares.
A concepção arawetĂ© de territorialidade Ă© aberta; eles nĂŁo tinham, atĂ© bem pouco, a noção de um domĂnio exclusivo sobre um espaço contĂnuo e homogĂŞneo. Chegando ao Ipixuna, deslocados por outros grupos da área que ocupavam, deslocaram por sua vez os AsurinĂ. Sua histĂłria fala de um movimento constante de fuga diante de inimigos mais poderosos. Os ArawetĂ© nĂŁo parecem ter uma geografia mitolĂłgica ou sĂtios sagrados. Sua atitude objetiva e subjetiva era um incessante ir em frente, deixando para trás os mortos e os inimigos. A idĂ©ia de reocupar uma área antiga lhes Ă© estranha – o que se constata mesmo dentro dos limites da bacia do Ipixuna.
As guerras em que estiveram envolvidos nunca foram concebidas como disputas territoriais, e as tribos que invadiam “suas” terras eram vistas menos como ameaça Ă integridade territorial que Ă sobrevivĂŞncia fĂsica do grupo. É justamente quando do “contato” e fixação em uma área restrita que uma concepção fechada de territĂłrio começou a emergir. Assim, por um lado, o estabelecimento de uma sĂł aldeia junto ao Posto da Funai rompe com o padrĂŁo geopolĂtico tradicional, que consistia em várias aldeias simultâneas e dispersas, menores que a aldeia atual; a dependĂŞncia do Posto diminuiu tambĂ©m o raio de movimentação. Por outro lado, o convĂvio com as concepções ocidentais de territorialidade (transmitidas direta ou indiretamente pelos brancos) e a situação de enclausuramento geográfico levam Ă emergĂŞncia de uma noção territorial fechada e exclusiva, consagrando uma nova situação histĂłrica – o fato de um “territĂłrio arawetĂ©”.
 Cultura material
Os ArawetĂ© possuem uma cultura material bastante simples, dentro do horizonte tupi-guarani. Isso se pode explicar, em parte, pelo estado constante de alarme e fuga diante de inimigos a que esse povo esteve sujeito nas Ăşltimas dĂ©cadas; e em parte, pelo trauma do ‘contato’.
Os homens araweté têm barba espessa, que costumam deixar crescer em cavanhaque; andavam nus, com apenas um cordão amarrando o prepúcio. As mulheres trazem um costume de quatro peças tubulares (cinta, saia, tipóia-blusa e um pano de cabeça), tecido de algodão nativo e tingido de urucum.
Elas portam brincos feitos de peninhas de arara dispostas em forma de flor, pendentes em linhas em que são enfiadas sementes de iñã (Cardiospermun halicacabum), bem como colares dessa mesma conta. Os homens usam os mesmos brincos, porém mais curtos. O cabelo é cortado em franja reta na testa até a altura das orelhas, de onde cresce até a nuca dos homens e a espádua das mulheres.
A tintura e a cor básica dos Araweté é o vermelho-vivo do urucum, com que cobrem os cabelos e o corpo, untando-os uniformemente. No rosto, porém, podem traçar apenas uma linha horizontal na altura das sobrancelhas, uma vertical ao longo do nariz, e uma diagonal de cada orelha às comissuras labiais. Esse padrão é também usado na decoração festiva, quando é traçado em resina perfumada e recoberto com as penas minúsculas de cotingas de plumagem azul brilhante. A plumagem do gavião-real é grudada nos cabelos.
A despeito de ter uma cultura material austera, os Araweté fabricam três objetos tecnicamente muito elaborados, e que além disto lhes são exclusivos, não possuindo análogos exatos em nenhum outro grupo tupi-guarani: o arco, o chocalho aray do pajé, a vestimenta feminina.
O arco (irapĂŁ) arawetĂ© Ă© feito de ipĂŞ (tayipa, Tabebuia serratifolia), e Ă© mais curto, curvo e largo que a maioria dos arcos indĂgenas brasileiros. Cada tronco de tayipa pode servir Ă fabricação de vários arcos. A madeira era trabalhada com ferramentas de osso e pedra (agora, com machados e facões de aço), e Ă© aplainada com um formĂŁo feito de dente de cotia, lixada com uma folha áspera atĂ© ficar completamente lisa, e por fim cuidadosamente aquecida no fogo e vergada atĂ© ganhar a forma adequada. Usa-se o leite do coco-babaçu, ou a gordura das larvas que vivem nessa palmeira, para tornar a madeira mais fácil de curvar. A corda do arco Ă© feita de fibra de curauá, uma bromeliácea cultivada (Neoglaziovia variegata).
Os ArawetĂ© usam trĂŞs tipos de flecha (o’i): uma para caça grossa, com ponta de taquaruçu (Guadua sp.) e emplumada com penas caudais de gaviĂŁo-real; e duas para pássaros, peixes e mamĂferos pequenos, com pontas de osso de guariba ou de pau farpeado, emplumadas com penas caudais de mutum. A haste das flechas Ă© feita de dois tipos de bambu Guadua sp. ou Merostachys sp.). Usam-se cera de abelha e fios de algodĂŁo para a fixação das pontas e das penas. Peninhas de tucano, arara ou cotinga sĂŁo amarradas na base das flechas Ă guisa de enfeite.
O chocalho aray de pajelança Ă© um cone invertido trançado de talas de arumĂŁ (Ischnosiphon sp.), recoberto de fios de algodĂŁo atĂ© deixar apenas a parte superior – que Ă© a base do cone – exposta. Um floco de algodĂŁo forma um ‘colarinho’ em volta da parte descoberta; ali se inserem quatro ou cinco penas caudais de arara-vermelha, dando ao objeto a aparĂŞncia de uma tocha flamejante. Pedaços da concha de um caramujo do mato sĂŁo colocados dentro do cone trançado. O aray produz um som chiante e contĂnuo; ele Ă© usado pelos pajĂ©s para acompanhar os cantos de MaĂŻÂ e para realizar uma sĂ©rie de operações mĂsticas e terapĂŞuticas: trazer os deuses e almas de mortos Ă terra para participarem das festas, reconduzir a alma perdida de pessoas doentes, ajudar no tratamento de ferimentos e picadas de animais venenosos.
Durante a fabricação do arco, um homem não deve ter relações sexuais com a esposa, ou a peça de madeira quebraria. O chocalho, em troca, tem seu corpo de arumã trançado pelas mulheres, e a cobertura de algodão imposta pelos homens. Mas uma vez pronto, o aray não pode ser usado pelas mulheres; instrumento muito poderoso, ele evoca os Maï que poderiam quebrar o pescoço da mulher que ousasse chamá-los. Nessa sociedade, só os homens são pajés.
Todo homem araweté, desde a adolescência, possui seu arco e flechas; usa essas armas não só para caçar e pescar, como passeia freqüentemente com elas pela aldeia, e as carrega orgulhosamente durante as danças da festa do cauim. Por sua vez, todo homem casado possui um chocalho aray; embora este seja o instrumento por excelência dos pajés, não há adulto que não tenha ao menos uma vez na vida cantado à noite, após ter visto os Maï em sonho.
Todo homem Ă© um pouco pajĂ©, dizem os ArawetĂ©, e pode realizar pequenas curas e cantar suas visões; mas apenas alguns, os verdadeiros peye, sĂŁo capazes de trazer os MaĂŻÂ e as almas dos mortos para as grandes festas, ou reconduzir as almas dos viventes que tenham sido capturadas pelos MaĂŻ ou outros espĂritos. O aray é um sĂmbolo do status de homem casado e com filhos; aray ñã, “senhores do chocalho”, Ă© um dos epĂtetos que designa a parte masculina adulta da sociedade arawetĂ©. O aray é mais especificamente um emblema da sexualidade masculina: um dos apelidos jocosos dados Ă s mulheres Ă© “quebradoras do chocalho”, evocando o fato de que, quando tĂŞm relações sexuais com elas, os homens ficam com sono e nĂŁo cantam Ă noite – o chocalho se “quebra”, isto Ă©, fica mudo-, e sugerindo que o aray é um sĂmbolo fálico.
O aray é o Ăşnico objeto de propriedade masculina que nĂŁo pode ser herdado por ninguĂ©m, apĂłs a morte de seu possuidor; ele deve ser queimado. Ele parece assim ser um objeto pessoal e intransferĂvel, dotado de valores simbĂłlicos profundos.
Esse caráter sexualmente marcado, pessoal e Ăntimo do aray tem um análogo entre os objetos femininos: a cinta interna, usada por todas as mulheres apĂłs a puberdade, tambĂ©m nĂŁo pode ser herdada por ninguĂ©m, ao contrário das peças externas. A roupa tradicional das mulheres arawetĂ© Ă© composta de quatro peças: esta cinta (ii re, “peça de dentro”), pequena peça tubular de lona grossa de algodĂŁo de cerca de 25 cm. de comprimento, que cobre o pĂşbis e a parte superior das coxas, cingindo-as estreitamente e dando Ă s mulheres um andar peculiar; uma saia de cima (tupĂŁy piki, “veste longa”), de trama mais aberta; uma larga tipĂłia (potĂŻnĂŁ nehĂŁ, “peitoral”) para carregar as crianças, mas que Ă© usada mesmo por jovens sem filhos; e um pano de cabeça (dacĂ® nehĂŁ, “chapĂ©u”), peça tubular como as demais vestimentas femininas, com a mesma trama aberta da saia e da tipĂłia. As vestes femininas sĂŁo tecidas em teares simples – dois talos de folhas de babaçu fincados perpendicularmente no chĂŁo – e tingidas com urucum. Elas consomem uma grande quantidade de algodĂŁo; assim como os homens passam boa parte de seu tempo fabricando e reparando suas armas, as mulheres dedicam muitas horas do dia ao processo de produção dos fios de algodĂŁo para as roupas e as redes. Há sempre alguĂ©m na aldeia tecendo uma peça de roupa ou uma rede.
Desde pequenas as mulheres usam a saia externa; por volta dos sete anos, costumam trazer tambĂ©m a tipĂłia e por vezes o pano de cabeça. A cinta Ă© imposta a partir da primeira menstruação- uma de suas funções Ă© absorver o sangue menstrual-, e nunca deve ser retirada na frente de outros homens que nĂŁo o marido ou o namorado, e mesmo assim apenas para o ato sexual. Mesmo entre as mulheres, as normas do pudor pedem que nĂŁo se fique ereta sem estar usando a cinta: no banho coletivo das mulheres, estas ficam em geral agachadas, quando estĂŁo fora d’água. Os homens manifestam um pudor análogo em retirar o cordĂŁo do prepĂşcio diante de outrem: a nudez para os ArawetĂ© Ă©, assim, a ausĂŞncia da cinta feminina ou do cordĂŁo peniano.
A cinta Ă© um objeto de forte conotação sexual, como o aray. O arco nĂŁo Ă© menos marcado sob esse aspecto. Já mencionamos que sua fabricação impõe a abstinĂŞncia sexual do homem, como se a sublinhar a natureza fálica do objeto. Mais que isto, a palavra para “arco”, irapĂŁ (que significa hoje “arma” em geral: arco, espingarda, revĂłlver), designa tambĂ©m os orgĂŁos sexuais masculinos e femininos- cada sexo tem suas “armas”, o pĂŞnis e a vagina. É interessante portanto observar que os trĂŞs objetos arawetĂ© mais elaborados, dos pontos de vista tĂ©cnico e simbĂłlico, possuem uma referĂŞncia Ă sexualidade humana.
 Atividades produtivas
A agricultura Ă© a base da subsistĂŞncia arawetĂ©, sendo o milho o produto dominante de março a novembro, e a mandioca no perĂodo complementar. De todo modo, há uma predominância absoluta do cultivo do milho sobre o da mandioca, o que distingue o grupo dos demais Tupi-Guarani amazĂ´nicos. O milho Ă© consumido como mingau de milho verde, farinha de milho, mingau doce, paçoca de milho e mingau alcoĂłlico. Este Ăşltimo (cauim) Ă© o foco da maior cerimĂ´nia, que se realiza várias vezes durante a estação seca. Planta-se tambĂ©m batata-doce, macaxeira, cará, algodĂŁo, tabaco, abacaxi, cuieiras, curauá (uma bromeliácea usada para cordoaria), mamĂŁo, urucum.
A caça também é objeto de intenso investimento cultural. Os Araweté caçam uma grande variedade de animais; em ordem aproximada de importância alimentar, temos: jabotis; tatus; mutuns, jacus; cotia; caititu; queixada; guariba; macacos-pregos; paca; veados; inhambus; araras, jacamins, jaós; anta. Tucanos, araras, o gavião-real e outros gaviões menores, os mutuns, o japu e dois tipos de cotingas são procurados também pelas penas, para flechas e adornos. As araras vermelha e canindé, e os papagaios, são capturados vivos e criados como xerimbabos na aldeia. (Em 1982, a aldeia tinha 54 araras criadas soltas.)
As armas de caça são o arco de madeira de ipê, admiravelmente bem trabalhado, e três tipos de flecha. As armas de fogo foram introduzidas em 1982, e seu uso tem levado à diminuição da população animal nos arredores, obrigando os Araweté a cobrirem um raio maior de território.
A pesca se divide em dois perĂodos: a estação de pesca com o timbĂł, em outubro-novembro, e os meses de pesca cotidiana, feita com arco e flecha ou anzol e linha. Embora o peixe seja alimento valorizado, Ă©-o menos que a carne de caça, e a pesca Ă© uma atividade principalmente exercida por meninos e mulheres (exceto as pescarias coletivas com timbĂł). Os ArawetĂ© sĂŁo Ăndios da terra firme: a maioria das pessoas mais velhas nĂŁo sabe nadar. A água de beber e cozinhar Ă© retirada de cacimbas abertas na margem arenosa dos cursos d’água ou nos açaizais.
A coleta Ă© uma atividade importante. Seus principais produtos alimentares sĂŁo: o mel, de que os ArawetĂ© possuem uma refinada classificação, com pelo menos 45 tipos de mel, de abelhas e vespas, comestĂveis ou nĂŁo; o açaĂ (Euterpe oleracea); a bacaba (Ĺ’nocarpus sp.); a castanha-do-Pará (Bertholetia excelsa), importante na Ă©poca das chuvas; o coco-babaçu (Orbygnia phalerata), comido e usado como liga do urucum, e para ductilizar a madeira dos arcos; e frutas como o cupuaçu (Theobroma grandiflorum), o frutĂŁo (Lucuma pariry), o cacau-bravo (Theobroma speciosum), o ingá (Inga sp.), o cajá (Spondias sp.), e diversas sapotáceas. Destaquem-se ainda os ovos de tracajás (Podocnemis sp.), objeto de excursões familiares Ă s praias do Ipixuna em setembro, e os vermes do babaçu (Pachymerus nucleorum), que podem tambĂ©m ser criados nos cocos armazenados em casa.
Dentre os produtos não-alimentares da coleta, podem-se registrar: as folhas e talas de babaçu para a cobertura das casas, esteiras, cestos; a bainha das folhas de inajá (Maximiliana maripa), açaà e babaçu, que servem de recipientes; dois tipos de cana para flecha; o taquaruçu para a ponta das flechas de guerra e caça grossa; a taquarinha e outras talas para as peneiras e o chocalho de xamanismo; a cuia silvestre para o maracá de dança; madeiras especiais para pilões, cabos de machado, arco, pontas de flecha, esteios e vigas das casas, paus de cavar, formões; enviras e cipós para amarração; e barro para uma cerâmica simples, hoje em desuso com a introdução das panelas de metal.
Os trabalhos e os dias
A vida social e econômica dos Araweté bate em compasso binário: floresta e aldeia, caça e agricultura, chuva e seca, dispersão e concentração.
Nas primeiras chuvas de novembro-dezembro, planta-se a roça de milho. Ă€ medida que cada famĂlia termina de plantar, vai abandonando a aldeia pela mata, onde ficará atĂ© que o milho esteja em ponto de colheita – um perĂodo de cerca de trĂŞs meses. Os homens caçam, estocam jabotis, tiram mel; as mulheres coletam castanha-do-Pará, coco-babaçu, larvas, frutas, torram o pouco milho velho da colheita anterior que trouxeram. Essa fase de dispersĂŁo Ă© chamada de awacĂŻ mo-tiarĂŁ, “fazer amadurecer o milho” – diz-se que, caso nĂŁo se vá para a mata, o milho nĂŁo vinga. Em fevereiro- março, apĂłs várias viagens de inspeção Ă s roças, alguĂ©m finalmente traz os cabelos do milho verde ao acampamento, mostrando a maturidade da planta. Faz-se aĂ a Ăşltima grande pajelança do jaboti – atividade tĂpica da estação chuvosa – e a primeira grande dança opirahĂ«, caracterĂstica da fase aldeĂŁ que está para se iniciar. Esse Ă© o “tempo do milho verde”, o começo do ano arawetĂ©.
Apenas quando todas as famĂlias já chegaram na aldeia se faz a primeira pajelança de cauim (mingau de milho) doce, a que outras se seguem. O milho de cada festa Ă© colhido coletivamente na roça de uma famĂlia, mas processado por cada unidade residencial da aldeia. Essa Ă© tambĂ©m uma Ă©poca em que as mulheres preparam grandes quantidades de urucum, dando Ă aldeia uma tonalidade avermelhada geral. A partir de abril- maio as chuvas diminuem, e se estabiliza a fase de vida aldeĂŁ, marcada pela faina incessante de processamento do milho maduro, que fornece a paçoca mepi, base da dieta da estação seca.
De junho atĂ© outubro estende-se a estação do cauim alcoĂłlico, que recebe seu nome: kĂŁ’i da me, “tempo do cauim azedo”. É o auge da seca. As noites sĂŁo animadas pelas danças opirahĂ«, que se intensificam durante as semanas em que se prepara o cauim. Essa bebida Ă© produzida por uma famĂlia ou seção residencial, com o milho de sua prĂłpria roça. Pode haver vários festins durante a estação seca, oferecidos por diferentes famĂlias. Eles costumavam reunir mais de uma aldeia – quando os ArawetĂ© possuĂam diferentes grupos locais- e ainda sĂŁo o momento culminante da sociabilidade. A festa do cauim alcoĂłlico Ă© uma grande dança opirahĂ«Â noturno em que os homens, servidos pela famĂlia anfitriĂŁ, dançam e cantam, bebendo atĂ© o dia seguinte.
Na fase final de fermentação da bebida – o processo todo dura uns vinte dias – os homens saem para uma caçada coletiva. Retornam uma semana depois, trazendo muita carne moqueada, o que os dispensará de caçar por vários dias. Na vĂ©spera da chegada dos caçadores há uma sessĂŁo de descida dos MaĂŻÂ e das almas dos mortos, trazidos por um pajĂ© para provarem do cauim.
A partir de julho-agosto começam a aumentar a freqĂĽĂŞncia e a duração dos movimentos de dispersĂŁo. As famĂlias se mudam para as roças, mesmo que essas nĂŁo distem muito da aldeia, e ali acampam por uma quinzena ou mais. É a estação de “quebrar o milho”, quando se colhe todo o milho ainda no pĂ© e se o armazena em grandes cestos, depositados sobre jiraus na periferia das roças. Dali as famĂlias se vĂŁo abastecendo atĂ© o final da estação seca, quando os cestos restantes sĂŁo levados para o novo sĂtio de plantio.
Esta temporada na roça reĂşne em cada acampamento mais de uma famĂlia conjugal – seja porque a roça pertence a uma seção residencial (conjunto de famĂlias aparentadas que moram prĂłximas entre si na aldeia), seja porque os donos de roças prĂłximas decidem acampar juntos. Durante a quebra do milho, os homens saem todo dia para caçar, enquanto as mulheres e crianças colhem as espigas, fazem farinha, tecem; essa Ă© tambĂ©m a Ă©poca da colheita do algodĂŁo.
Tais temporadas na roça são vistas como muito agradáveis. Depois de cinco ou seis meses de convivência na aldeia, os Araweté parecem ficar inquietos e entediados. Nos acampamentos de roça as pessoas ficam mais à vontade, conversam livremente sem medo de serem ouvidas por vizinhos indiscretos.
Durante o auge da estação seca, dificilmente se passa mais de uma semana sem que um grupo de homens decida realizar uma expedição de caça, quando dormem fora de uma a cinco noites. SĂŁo comuns tambĂ©m, a partir de agosto, as excursões de grupos de famĂlias, para pegar ovos de tracajá, pescar, caçar, capturar filhotes de arara e papagaio. Exceto nos meses de março a julho, Ă© muito raro haver dias em que todas as famĂlias estĂŁo dormindo na aldeia.
A partir de setembro, a estação do cauim começa a dar lugar ao tempo do açaĂ e do mel. A chegada dos espĂritos Iaraci (o “comedor de açaĂ”) e AyaraetĂŁÂ (o “pai do mel”), trazidos Ă aldeia pelos pajĂ©s, provoca a dispersĂŁo de todos para a mata em busca dos produtos associados a esses espĂritos.
Em outubro-novembro, com as águas dos rios em seu nĂvel mais baixo, fazem-se as pescarias com timbĂł, que tambĂ©m levam Ă fragmentação da aldeia em grupos menores.
A dispersão criada por todas essas atividades de coleta e pesca, porém, é mais uma vez contrabalançada pelas exigências do milho. Em setembro começa a derrubada das roças novas; no final de outubro, a queimada; e logo às primeiras chuvas de novembro-dezembro, o plantio, logo antes da dispersão das chuvas. Antes de partirem para a mata, colhe-se a mandioca, cuja farinha servirá de complemento à caça e ao mel da dieta da mata.
Este é o ciclo anual araweté: um constante oscilar entre a aldeia e a floresta, a agricultura e a caça-coleta, a estação seca e a chuvosa. A vida na aldeia está sob o signo do milho, e de seu produto mais elaborado, o cauim alcoólico; a vida na mata está sob o signo do jabuti (a caça dominante na estação chuvosa) e do mel.
Organização polĂtica
Os ArawetĂ© sĂŁo um povo orgulhosamente individualista, refratário a qualquer forma de ‘coletivismo’ e de comando, onde as pessoas se recusam a seguir as outras, preferindo ostentar uma independĂŞncia obstinada. Aos olhos ocidentais, sempre preparados para julgar as coisas sob o ângulo da ‘coordenação’ e da ‘organização’, sua vida dá uma singular impressĂŁo de desordem e descaso. Era-me sempre muito difĂcil determinar o momento inicial de qualquer ação coletiva: tudo parecia ser deixado para a Ăşltima hora, ninguĂ©m se dispunha a começar coisa alguma…
Na verdade, Ă© exatamente pelo fato da ação coletiva ser, aos olhos arawetĂ©, ao mesmo tempo uma necessidade e um problema, que a noção de tenotĂŁ mõ, “lĂder”, designa uma posição onipresente mas discreta, difĂcil mas indispensável. Sem um lĂder nĂŁo há concerto coletivo; sem ele nĂŁo há aldeia.
TenotĂŁ mõ significa “o que segue Ă frente”, “o que começa”. Essa palavra designa o termo inicial de uma sĂ©rie: o primogĂŞnito de um grupo de irmĂŁos, o pai em relação ao filho, o homem que encabeça uma fila indiana na mata, a famĂlia que primeiro sai da aldeia para excursionar na estação chuvosa. O lĂder arawetĂ© Ă© assim o que começa, nĂŁo o que comanda; Ă© o que segue Ă frente, nĂŁo o que fica no meio.
Toda e qualquer empresa coletiva supõe um tenotã mõ. Nada começa se não houver alguém em particular que comece. Mas entre o começar do tenotã mõ, em si mesmo algo relutante, e o prosseguir dos demais, sempre é posto um intervalo, vago mas essencial: a ação inauguradora é respondida como se fosse um pólo de contágio, não uma autorização.
O puro contágio – a propagação de uma atividade sem concerto, onde cada um faz por sua conta a mesma coisa – Ă© a forma corriqueira de ação econĂ´mica arawetĂ©. Um belo dia, por exemplo, duas vizinhas põem-se a preparar urucum. NĂŁo por haver cerimĂ´nia em vista, ou porque esta seja a Ă©poca do urucum; mas apenas porque o decidiram. Em algumas horas, vĂŞem-se todas as mulheres da aldeia a fazer o mesmo. Um homem passa distraĂdo por um pátio alheio, vĂŞ outro a fabricar flechas; resolve fazĂŞ-lo tambĂ©m, e daĂ a pouco estĂŁo os homens sentados em seus pátios, a fazer flechas.
Esta forma de propagação deve ser distinguida daquelas atividades onde o sinal para a ação Ă© dado pela natureza. E mesmo aĂ, a emulação Ă© importante: apĂłs um longo perĂodo de vida na aldeia, um grupo de famĂlias decide excursionar; no espaço de alguns dias, vários outros grupos saem, cada qual numa direção, como se de repente todos descobrissem que nĂŁo agĂĽentavam mais o tĂ©dio da vida em comum.
Essa forma de ação ‘coletiva’ aparece como uma solução interessante para o problema do começar, uma vez que cada um faz a mesma coisa, ao mesmo tempo, mas para si, numa curiosa mistura de submissĂŁo ao costume e manutenção da autonomia. Ela manifesta uma tendĂŞncia Ă repetição extrĂnseca das atividades, o que Ă© consoante com a autonomia dos pátios e setores da aldeia.
Mas algumas atividades fundamentais nĂŁo sĂŁo realizáveis sem um tenotĂŁ mõ. Mesmo que a forma de trabalho seja a cooperação simples, elas supõem um inĂcio formal. As principais sĂŁo: as caçadas coletivas, cerimoniais ou nĂŁo; a colheita e processamento de milho, açaĂ etc., para uma festa de peyo (pajelança); a dança opirahĂ«; as expedições de guerra; a escolha do sĂtio de roças multi-familiares e do lugar de aldeias novas.
Um tenotĂŁ mõ é alguĂ©m que decide onde e quando se vai fazer algo, e que sai na frente para fazĂŞ-lo. Quem propõe a outrem uma empresa Ă© o tenotĂŁ mõ dela; quem pergunta “vamos?”, vai na frente, ou nada acontece.
Ocasiões diversas tĂŞm tenotĂŁ mõ diversos, o que faz circular a função de liderança (que Ă s vezes nĂŁo Ă© mais que este gesto de começar) entre todos os adultos. O lĂder de uma empresa pode ser aquele que teve a idĂ©ia dela, ou que sabe como levá-la a cabo. Tal posição pode caber a mais de um indivĂduo, para a mesma tarefa. E a aldeia pode fracionar-se em diversos grupos, cada qual com seu tenotĂŁ mõ. Ao lĂder incumbe a convocação dos demais, e o movimento inicial: aos poucos, os outros o seguem.
Esta posição de tenotĂŁ mõ é vista como algo constrangedora. Um lĂder Ă© alguĂ©m que nĂŁo tem “medo-vergonha” (iyie) de se arriscar a convocar os outros. Ele precisa saber interpretar o clima vigente na aldeia, antes de começar de fato, ou ninguĂ©m o segue. O processo efetivo de tomada de decisões Ă© discreto – conversas aparentemente distraĂdas nos pátios noturnos, declarações a ninguĂ©m em particular de que se vai fazer algo amanhĂŁ, combinações confidenciais de grupos de amigos, tudo isto termina por gerar um lĂder para uma tarefa.
Mas, para alĂ©m dessa forma de determinação de posições temporárias e limitadas de liderança, toda a aldeia reconhece um homem, ou melhor, um casal, como ire renetĂŁ mõ, “nossos lĂderes”, uma posição fixa e geral. Contudo, o âmbito das atividades em que esses lĂderes agem formalmente como tenetĂŁ mõ da aldeia Ă© mĂnimo.
Os “donos da aldeia” sĂŁo os tĂŁ ñã, o casal ou casais que primeiro abriram uma roça de milho no sĂtio de uma aldeia nova, Ă volta da qual se foram agregando outras roças e outras casas. O tĂŁ ñã, assim, Ă© o fundador de uma aldeia, e Ă© isto que o transforma em tenetĂŁ mõ. Ele Ă© o “dono da aldeia” na medida em que esta se ergue em um espaço que ele abriu ou marcou, e que foi derrubado por sua famĂlia extensa. Toda aldeia, portanto, Ă© uma ex-roça (ka pe, capoeira) de uma ou mais famĂlias fundadoras.
VĂŞ-se, assim, que nĂŁo sĂł a aldeia, mas sua chefia Ă© função do milho, e que a noção de tenotĂŁ mõ de aldeia nĂŁo Ă© mais que o desenrolar temporal do movimento de começar uma aldeia nova. O nome “dono da aldeia” nĂŁo significa que seu portador disponha de qualquer direito sobre o solo aldeĂŁo: nĂŁo determina onde as famĂlias dos outros erguerĂŁo suas casas, onde farĂŁo suas roças; nĂŁo Ă© responsável por nenhum espaço comunal; nĂŁo coordena trabalhos pĂşblicos.
A situação dos ArawetĂ© desde 1976, particularmente o fato de que sua Ăşnica aldeia ser uma fusĂŁo dos remanescentes de diversos grupos locais, tendo, alĂ©m disso, uma população bem maior que a das aldeias tradicionais, certamente explica a grande autonomia dos setores residenciais, e conseqĂĽentemente a minimização da posição de “dono da aldeia” e “lĂder”. A autoridade de um “dono de aldeia” tradicional deverá ter sido algo maior, exatamente porque os grupos locais eram menores. O que hoje Ă© a grande autonomia dos setores residenciais, no passado deve ter sido a autonomia dos grupos locais, que entĂŁo estavam mais prĂłximos de sua matriz sociolĂłgica, a famĂlia extensa uxorilocal.
 Aldeia e sociedade
Os Araweté parecem viver em aldeias por causa do milho; todos os seus movimentos de reunião em um só lugar se fazem em função das exigências do cultivo desta planta. Isso já se mostra na instalação de uma nova aldeia. Se toda roça foi, antes, mata, toda aldeia foi, antes, roça. Quando um grupo decide mudar-se para outro lugar, abre primeiro as roças de milho, e se instala no meio delas. Com o passar do tempo e das safras as plantações vão recuando, e resta uma aldeia.
Ao contrário das aldeias dos povos indĂgenas do Brasil Central, com suas casas geometricamente dispostas em cĂrculo em torno de um pátio cerimonial, a aldeia arawetĂ© dá a impressĂŁo inicial de um caos. As casas sĂŁo muito prĂłximas umas das outras, nĂŁo obedecendo a nenhum princĂpio de alinhamento; os fundos de umas sĂŁo os pátios fronteiros de outras; caminhos tortuosos atravessam a aglomeração, entre moitas de árvores frutĂferas, troncos caĂdos e buracos. Cascos de jaboti e resĂduos da faina do milho estĂŁo em toda parte; o mato cresce livremente onde pode, as fronteiras entre o espaço aldeĂŁo e a capoeira circundante sĂŁo vagas.
Em 1982, quando passei meu mais longo perĂodo entre os ArawetĂ©, apenas trĂŞs das entĂŁo 45 casas da aldeia estavam ainda construĂdas ao modo ‘tradicional’: pequenas choupanas inteiramente cobertas de folhas de babaçu, sem distinção teto-parede, com diminutas portas dianteiras fechadas com esteiras. As demais seguiam o estilo camponĂŞs regional: paredes de taipa, telhado de folha de babaçu, planta retangular. Alguns princĂpios da arquitetura prĂ©-contato foram mantidos, porĂ©m, como a ausĂŞncia de janelas e o pequeno tamanho da porta. Em março de 1992, a aldeia contava com 55 casas, todas construĂdas nesse novo estilo, que tambĂ©m corresponde Ă totalidade das casas da aldeia atual.
Os moradores de uma casa formam uma famĂlia conjugal: um casal e seus filhos atĂ© 10-12 anos. Nessa idade, os meninos constrĂłem pequenas casinhas iguais Ă s dos pais, prĂłximo a estas, e ali dormem sozinhos, embora continuem a usar o fogo de cozinha familiar. As meninas dormem na casa dos pais atĂ© a puberdade, quando entĂŁo devem deixá-la e casar (os ArawetĂ© sustentam que os pais de uma menina morreriam se ela menstruasse em sua casa natal).
Cada residĂŞncia possui um hikĂŁÂ ou terreiro, uma área mais ou menos limpa de mato em frente ou ao lado da porta. É ali que ficam alguns instrumentos – pilões, tachos, panelas -, e que se trabalha de dia, torrando milho, fazendo flechas, tecendo esteiras e roupas. Ali se cozinha, na estação seca. O terreiro Ă© o lugar onde se conversa e se tomam as refeições, e onde se recebem as visitas. É algo raro que uma pessoa (exceto se mĂŁe ou irmĂŁ da dona) entre em casa alheia. Ă€ noite trancam-se as portas, veda-se qualquer pequena abertura nas paredes, para que os espĂritos perigosos que rondam a aldeia nĂŁo entrem.
Mas a desordem espacial da aldeia Ă© apenas aparente. Embora cada casa conjugal tenha seu prĂłprio terreiro, grupos de casas tendem a dividir um espaço comum, fundindo seus diferentes pátios em uma área contĂnua. A aldeia Ă© uma constelação desses pátios maiores, que sĂŁo o cenário principal da vida cotidiana. Tais setores da aldeia que se congregam em torno de um mesmo pátio estĂŁo organizados de acordo com a unidade social básica arawetĂ©, a famĂlia extensa uxorilocal (forma de residĂŞncia pĂłs-marital onde o homem vai residir junto Ă famĂlia da mulher): um casal mais velho, seus filhos solteiros de ambos os sexos e suas filhas casadas, genros e netos. Isto nĂŁo quer dizer que cada setor da aldeia seja ocupado sempre por casas de pessoas ligadas dessa forma. Na verdade, os arranjos residenciais arawetĂ© sĂŁo bastante variados, assim como a distinção entre os diferentes setores nem sempre Ă© espacialmente clara.
Os setores residenciais da aldeia podem ser divididos em dois tipos: aqueles formados por famĂlias com duas gerações de membros casados (cujo modelo Ă© a famĂlia extensa uxorilocal), e aqueles formados por grupos de irmĂŁos (irmĂŁos e/ou irmĂŁs) casados, com filhos ainda pequenos. O primeiro tipo forma unidades espacialmente mais compactas e socialmente mais integradas, voltando-se de fato para um pátio comum; o segundo Ă© antes composto por pátios prĂłximos ou adjacentes. Esses dois tipos de setor representam dois momentos no ciclo de desenvolvimento temporal das famĂlias: se a tendĂŞncia apĂłs o casamento Ă© idealmente uxorilocal, com o passar do tempo e a morte do casal mais velho pode-se observar um movimento de reuniĂŁo espacial de irmĂŁos casados, que se mudam com seus respectivos cĂ´njuges. Como tambĂ©m Ă© comum o casamento entre grupos de irmĂŁos – dois irmĂŁos casando-se com duas irmĂŁs, ou um par irmĂŁo/irmĂŁ unindo-se a outro par -, muitas vezes os dois tipos de setor residencial se encontram combinados.
Os setores formados por famĂlias extensas tendem a abrir uma sĂł roça, que abastece todas as casas do setor; essa roça Ă© identificada ao casal mais velho (os sogros dos homens casados e pais das mulheres). Nos setores compostos por grupos de irmĂŁos adultos, cada casa abre sua prĂłpria roça, em geral adjacente Ă s dos outros irmĂŁos.
O que sobressai, na estrutura da aldeia arawetĂ©, Ă© seu pluricentrismo, isto Ă©, a ausĂŞncia de um espaço ‘pĂşblico’, cerimonial e centralmente situado. A aldeia parece um agregado de pequenas aldeias, ‘bairros’ de casas voltados para si mesmos. A festa do cauim fermentado, a mais importante cerimĂ´nia arawetĂ©, Ă© sempre realizada no pátio da famĂlia que oferece a bebida. A oferenda alimentar mais perigosa, a de açaĂ com mel para o canibal celeste Iaraci, Ă© feita no pátio do pajĂ© encarregado de “trazer” esse espĂrito. Ou seja: a organização cerimonial, se efetivamente contribui para unir a comunidade local, nĂŁo chega a constituir um centro marcado por um simbolismo religioso. A pajelança cotidiana tampouco se realiza em qualquer espaço comunal. O templo de um pajĂ© Ă© sua casa: Ă© ali que ele sonha e canta Ă noite, saindo para seu prĂłprio pátio quando os MaĂŻÂ descem. Se precisa devolver a alma de alguĂ©m, vai ao pátio do paciente, ou Ă beira do rio (quando o ladrĂŁo de alma Ă© o espĂrito IwikatihĂŁ, o Senhor da água). Entre os ArawetĂ©, portanto, nĂŁo sĂł nĂŁo se acham as ‘casas cerimoniais’ de outros povos tupi-guarani, como tampouco o sistema das ‘tocaias’, pequenas tendas de palha onde os pajĂ©s recebem os espĂritos, presente em quase todos os Tupi-Guarani da AmazĂ´nia.
Tudo isto sustenta esta conclusĂŁo: a aldeia Ă© uma forma derivada, um resultado e nĂŁo uma causa. Economicamente, ela Ă© função do milho; sociologicamente, Ă© a justaposição de unidades menores, nĂŁo seu centro organizador. Ela Ă© o produto do equilĂbrio temporário entre as forças centrĂpetas e centrĂfugas dos diversos pátios.
Um dia na estação seca
Afora alguns homens que saĂram bem cedo para caçar mutum, Ă© sĂł lá pelas sete horas que a aldeia começa a se movimentar. As famĂlias comem algo em seus terreiros; alguns vĂŁo visitar o Posto; outros passeiam por pátios vizinhos, informando-se dos planos dos demais; outros se quedam trabalhando: nessa Ă©poca, desde cedo as mulheres descaroçam e batem os flocos de algodĂŁo, fiam e tecem. A famĂlia entĂŁo decide o seu dia. O homem sai para caçar, em geral com dois ou trĂŞs companheiros; se nĂŁo, vai ajudar a mulher a torrar milho, ou sai com ela Ă roça, buscar milho e batata, aproveitando para caçar nos arredores. Ao meio-dia a aldeia está vazia. Quem foi Ă roça já voltou e está dentro de casa, fugindo do sol forte.
O calor da tarde começa a amainar às quatro; a aldeia se reanima. As mulheres pilam milho, recolhem lenha, buscam água, à espera dos caçadores. Os homens que ficaram na aldeia ajudam no serviço do milho, ou trabalham na feitura e manutenção de suas armas.
Entre as cinco e seis horas, já escurecendo, vão chegando os caçadores. Sozinhos ou em grupo, entram apressados e silenciosos, ignorando os comentários que sua carga desperta nos pátios por onde passam, só parando no terreiro de suas casas. Vão-se então banhar, enquanto as mulheres acendem as fogueiras para a refeição noturna. Quando a caçada do dia foi abundante, a animação toma conta de todos. Quem não está ocupado em cozinhar passeia pelos pátios, observando o que lá se prepara. As crianças correm, dançam e brincam pela aldeia; as araras gritam estridentemente, e seus donos começam a recolhê-las.
No cair da noite começa uma ronda gastronĂ´mica de pátio em pátio. Quando a carne Ă© muita, isto se estende atĂ© as dez horas ou mais, cada famĂlia convidando, sucessivamente, as outras. Os homens dĂŁo gritos agudos e prolongados, convocando os moradores de outros setores residenciais a comer o porco, o mutum ou o tatu que se prepara. As famĂlias vĂŁo-se reunindo no pátio do anfitriĂŁo, trazendo ou nĂŁo seus filhos pequenos, conforme as estimativas da comida disponĂvel. Cada casal que chega traz seu prĂłprio cesto com paçoca de milho. Todos se sentam em esteiras no chĂŁo, perto da carne; tagarela-se, ri-se, a balbĂşrdia Ă© geral.
Sigamos a marcha do dia. ApĂłs as refeições noturnas, a aldeia começa a silenciar. As famĂlias voltam para seus pátios, onde se deitam a conversar. Por volta da meia-noite, quase todos já estĂŁo dentro de suas casas – a menos que uma dança opirahĂ« esteja sendo realizada em algum lugar da aldeia.
 Cauinagem
Quando uma famĂlia decide oferecer uma festa de cauim, avisa a toda a aldeia, e pede quanta panela houver, de todas as casas. Inicia entĂŁo a labuta: marido e mulher pilam milho, cozinham-no, a mulher mastiga a massa (para fermentar) e coa o mingau. O casal deve manter abstinĂŞncia sexual durante todo este perĂodo, ou o mingau nĂŁo fermentará. O marido sai menos para caçar, indo todo o dia Ă roça buscar milho. As panelas cheias vĂŁo sendo enfileiradas dentro da casa, ao longo das paredes.
NinguĂ©m de fora deve olhar o cauim fermentando, ou o processo desanda. Todas as noites, dança-se no pátio do anfitriĂŁo, para “fazer esquentar o cauim” – uma referĂŞncia nĂŁo sĂł ao cozimento do mingau, mas ao processo de fermentação, que libera uma considerável quantidade de calor. As manhĂŁs sĂŁo marcadas pelo consumo coletivo do hati pe, o bagaço azedo que Ă© separado do lĂquido em fermentação.
Entrementes, o dono do cauim convida um homem para ser o cantador da festa; ele será tambĂ©m o lĂder da caçada ritual que precede a cerimĂ´nia. Quando todo o mingau já foi processado e está a fermentar, o dono avisa ao cantador que Ă© tempo de sair para a caçada, dita kĂŁ’i mo-ra, “fazer fermentar o mingau”.
A expedição de caça reĂşne todos os homens da aldeia, com exceção do anfitriĂŁo, que deve permanecer na aldeia zelando pela fermentação da bebida, e do pajĂ© que estiver encarregado de realizar a cerimĂ´nia do “serviço do cauim” (kĂŁ’i dokĂŁ).
Liderados pelo cantador, os homens partem. Na aldeia, ficam as mulheres a torrar milho e recolher lenha para a carne que virá. Toda noite, elas dançam no pátio do anfitrião, lideradas pela esposa do cantador. Essas danças são arremedos jocosos do opirahë masculino: as canções araweté, de dança ou de pajelança, são sempre de autoria masculina, pois só os homens são guerreiros e pajés, e só eles podem trazer os Maï à terra. Por isso, as mulheres podem apenas repetir as canções masculinas, jamais compondo novas canções.
A pajelança chamada “serviço do cauim” realiza-se tarde da noite, na vĂ©spera da chegada dos caçadores. As panelas sĂŁo trazidas de dentro da casa do dono, colocadas em seu colo, e esvaziadas pelos MaĂŻ e almas de mortos trazidas pelo pajĂ© para tomar a bebida. O pajĂ© narra uma festa de cauim invisĂvel, onde os MaĂŻ e os mortos se atropelam em volta das panelas, bebendo atĂ© Ă saciedade. Essa cauinagem mĂstica Ă© assistida pelas mulheres, que depois contam a seus maridos o que disseram os visitantes celestes. O cauim alcoĂłlico será, quando tomado no dia seguinte pelos homens, definido como MaĂŻ dĂ«mĂŻdo pe, “ex-comida dos deuses”. Essa Ă© a mesma expressĂŁo que designa os mortos celestes, que foram devorados pelos MaĂŻ ao chegar ao cĂ©u e em seguida ressuscitados por estes.
Horas antes da festa, os homens retornam da caçada. Perto da aldeia, detĂŞm-se a esperar os retardatários e aguardam o cair da tarde. Todos entĂŁo se banham, e põem-se a fabricar os terewo, trombetas espiraladas feitas de folĂolos de babaçu, de som cavo e pungente. Prontos, seguem caminho, soando os terewo, que se ouvem desde muito longe. As mulheres correm a banhar-se e embelezar-se, e acendem as fogueiras. Ao chegar na aldeia, os homens se dispersam silenciosos e compenetrados, indo para suas casas. As carnes que trazem sĂŁo postas sobre moquĂ©ns ou jiraus para continuar a assar. Logo se ouve o dono do cauim a convocar todos – em primeiro lugar, o cantador – para uma prova da bebida que será servida. Cai a noite. As famĂlias vĂŁo para seus pátios decorar-se; essa Ă© a ocasiĂŁo em que os ArawetĂ© se apresentam mais enfeitados, sobretudo o cantador, com o diadema de penas de arara, a cabeça emplumada de branco, o rosto decorado com penas de cotinga e resina perfumada, o corpo rebrilhando de urucum fresco: MaĂŻ herĂ®, “como um deus”. O dono do cauim, ao contrário, nĂŁo se pinta nem se enfeita; ele Ă© um servidor dos convivas.
Por volta das nove horas, o cantador se levanta em seu pátio, e começa a convocar os demais. Chama primeiro os marakay rehã, aqueles que dançarão a seu lado, posição combinada durante a caçada, e que cabe a alguns de seus apöhi-pihã, amigos cerimoniais.
ApĂłs a chegada do cantador, que ocupa com sua famĂlia o lugar mais prĂłximo Ă porta do anfitriĂŁo, as famĂlias vĂŁo-se instalando em esteiras Ă volta do pátio da festa. Aos poucos começa a dança, constantemente interrompida pelo dono do cauim, sua esposa e filhos, que servem cuias cheias de bebida aos dançarinos. É ponto de honra tomar de um sĂł gole todo o conteĂşdo da cuia (meio litro). As panelas se esvaziam rapidamente, e vĂŁo sendo amontoadas num canto. Todos devem beber – exceto a famĂlia dos donos da bebida, que apenas serve. Diz-se tambĂ©m que parentes prĂłximos do casal anfitriĂŁo devem tomar pouco da bebida, sobretudo se dividem o mesmo pátio e plantam a mesma roça de milho. Essa norma sugere duas idĂ©ias: nĂŁo se deve tomar cauim mastigado por uma parenta prĂłxima, nem produzido com o milho da prĂłpria roça.
A situação atual de reuniĂŁo de todos os ArawetĂ© em uma sĂł aldeia esconde uma oposição que era fundamental na festa do cauim: o cantador deveria vir sempre de uma aldeia outra que a do dono do cauim. Essa festa reunia tradicionalmente mais de uma aldeia, e os homens das aldeias convidadas formavam o nĂşcleo principal dos dançarinos, entremeados por alguns amigos cerimoniais da aldeia do anfitriĂŁo. O patrono do cauim encarnava a aldeia anfitriĂŁ, o cantador as aldeias convidadas; os co-residentes do dono da festa estariam numa situação intermediária, dançando menos e tomando menos cauim que os convidados. Os co-residentes do casal patrono, contudo, tambĂ©m saĂam para caçar; como hoje, apenas o dono do cauim ficava na aldeia, para acompanhar a fermentação.
Voltemos à festa. Com o passar do tempo e das sucessivas rodadas de cauim, os dançarinos vão-se embriagando, e algumas mulheres se animam a dançar. Os homens vomitam o cauim que lhes é implacavelmente servido; o maracá do cantador, os aray dos pajés (que podem estar, em diferentes locais do pátio, fechando o corpo de crianças pequenas para que seus pais possam beber sem prejudicá-las), os cantos de uns e dos outros se misturam; ouvem-se gritos e risadas. Alguns começam a chorar desesperadamente, os mais velhos porque lembram dos filhos mortos, outros apenas balbuciam frases sem nexo. Quando se está bêbado de cauim, dizem os Araweté, espigas de milho ficam a girar diante de nossos olhos, entontecendo-nos.
A cauinagem termina Ă s primeiras luzes da aurora; poucos restam de pĂ©. O cantador Ă© sempre o Ăşltimo a se retirar do terreiro. Se ainda sobraram panelas de cauim, no dia seguinte a festa tem de continuar. No cair da tarde os homens se reĂşnem dentro da casa do dono, e ali ficam cantando e bebendo atĂ© que o sol se ponha. SĂł entĂŁo se transferem para o pátio, onde cantam atĂ© a Ăşltima gota da bebida ser servida. Exaustos – nem todos agĂĽentam essa segunda rodada -, dispersam-se; Ă© o fim da festa.
Durante a festa do cauim, ninguĂ©m come nada – nisso os ArawetĂ© se parecem mais uma vez com os Tupinambá, que chamaram a atenção dos primeiros observadores europeus (vindos de uma civilização onde se tomava vinho durante as refeições) por jamais beberem enquanto comiam e vice-versa. No dia seguinte Ă festa, as mulheres dos caçadores, lideradas pela esposa do cantador, vĂŁo atĂ© a casa da dona do cauim e lhe entregam parte da caça trazida por seus maridos. Essa carne Ă© o kĂŁ’i pepikĂŁ, o “pagamento do cauim”. O casal dono do cauim irá convidar, em seguida, todos os membros da aldeia para comer da carne que receberam; o ‘pagamento’, como se vĂŞ, termina sendo repartido com aqueles mesmos que ‘pagaram’: sĂŁo razões sociais que presidem a estas trocas alimentares, nĂŁo razões meramente econĂ´micas.
Valores simbĂłlicos da cauinagem
Por trás dessa festa aparentemente confusa e tumultuada, existe uma sĂ©rie de associações simbĂłlicas importantes: o cauim Ă© uma bebida carregada de significados. Vejamos, em primeiro lugar, o papel do dono do cauim. Ele ocupa uma posição feminina: dedicado ao milho, nĂŁo caça, nĂŁo dança, nĂŁo bebe. Por outro lado, seu papel Ă© uma sĂntese de dois estados masculinos tĂpicos: o do pai de criança pequena, e o de homem em trabalho de fabricação de filho. Como o primeiro, ele nĂŁo pode ter relações sexuais, nem deve sair da aldeia; como o segundo, ele “esquenta o cauim”, cozinhando-o e zelando por sua fermentação, como um homem deve “esquentar o feto” por meio de cĂłpulas freqĂĽentes com sua mulher, um processo indispensável Ă boa gestação. (Os ArawetĂ©, como a maioria dos outros povos indĂgenas brasileiros, sustentam que um sĂł ato sexual nĂŁo Ă© suficiente para uma boa concepção: o feto Ă© literalmente fabricado por um aporte constante de sĂŞmen paterno durante os primeiros meses da gestação).
Os ArawetĂ© nĂŁo me traçaram paralelos explĂcitos entre a fermentação do cauim e a gestação. Mas há uma sĂ©rie de associações entre esses dois processos. Em primeiro lugar, tanto a fermentação quanto a gestação fazem-se atravĂ©s das mulheres, e sĂŁo vistas como transformações (heriwĂŁ) de uma matĂ©ria-prima: o sĂŞmen masculino, matĂ©ria exclusiva da criança (os ArawetĂ© sustentam que a mulher nĂŁo contribui com nenhuma substância na formação do filho), Ă© transformado no Ăştero materno; o milho cozido com água transforma-se em cauim na boca da mulher que o mastiga. Por isso, aliás, uma mulher menstruada nĂŁo pode mastigar cauim, e se uma dona do cauim que estiver grávida abortar durante a fabricação da bebida, esta deve ser jogada fora. Os pais de crianças pequenas nĂŁo podem ter relações sexuais nem tomar cauim: a criança se encheria com o sĂŞmen paterno ou com o cauim tomado, engasgando-se e morrendo sufocada.
VĂŞ-se uma oposição entre sĂŞmen e cauim que reforça sua ligação: o primeiro vai dos homens para as mulheres, mas o segundo vai das mulheres – que o mastigam, e que quase nĂŁo bebem – para os homens. A cauinagem Ă© a Ăşnica ocasiĂŁo em que as mulheres (ou o casal anfitriĂŁo, que ocupa uma posição feminina) servem os homens. Cheios de cauim, os dançarinos incham e dizem ficar barrigudos como as mulheres grávidas. Tem-se como um processo de ‘inseminação artificial’, onde o cauim surge como uma espĂ©cie de sĂŞmen feminino.
Por seus efeitos entontecedores, o cauim Ă© ainda comparado ao timbĂł, a liana usada pelos ArawetĂ© como veneno de pesca. Diz-se que o cauim Ă© um “matador de gente” como o timbĂł Ă© um “matador de peixe”: “na cauinagem ficamos como os peixes, bĂŞbados de timbĂł”. A comparação Ă© boa, pois o timbĂł nĂŁo Ă© veneno propriamente, mas um narcĂłtico: se os peixes nĂŁo forem capturados enquanto tontos, reanimam-se e escapam. Esse caráter de veneno atenuado do cauim de milho tem uma expressĂŁo proverbial: “o suco da mandioca brava nos mata de verdade, o do milho nĂŁo”.
Outra associação do cauim Ă© com o leite materno: o leite Ă© dito ser o “cauim das crianças”. Por isso, os pais de criança de peito devem submetĂŞ-las Ă operação de “fechamento do corpo” executada por um pajĂ©: caso contrário, o cauim, este leite dos adultos, passa para o corpo da criança e a mata. Tal associação entre o cauim e o leite reforça-se quando recordamos a posição ‘nutriz’ das mulheres diante dos homens, durante a cerimĂ´nia. Note-se ainda que Ă© comum as mĂŁes alimentarem seus bebĂŞs com comida previamente mastigada por elas – como o cauim o Ă©. SĂŞmen feminino, veneno suave, leite azedo, o cauim Ă© uma bebida que condensa diversas evocações simbĂłlicas.
Finalmente, a principal referĂŞncia da cauinagem Ă© a guerra. A caçada cerimonial que precede a festa Ă© simbolicamente uma expedição guerreira. O cantador, lĂder da caçada, Ă© um guerreiro; um dos apelidos jocosos dados aos inimigos Ă© kĂŁ’i nĂŁhi, “tempero do cauim” – isto Ă©, aquilo que lhe dá sabor, que o anima. Isto evoca o fato de que a morte de um inimigo na guerra era sempre comemorada com uma grande cauinagem, onde o guerreiro que matou o inimigo oficiava como cantador.
 A dança opirahë
O opirahĂ«Â Ă© a Ăşnica forma de dança praticada pelos ArawetĂ©: uma massa compacta de homens, dispostos em linhas, que se desloca lentamente em cĂrculos anti-horários, cantando. Na linha do meio, e no meio desta, vai o cantador (marakay), que toca um chocalho de dança para a marcação do ritmo. O cantador começa cada canto, repetido em unĂssono pelos demais dançarinos. ApĂłs um bloco de canções, os dançarinos se dispersam, sentando nas esteiras Ă volta do pátio da dança com suas mulheres. Passados alguns minutos, o cantador se levanta; o grupo entĂŁo se refaz, com cada homem ocupando a mesma posição no interior do conjunto que na etapa anterior. Cada linha, composta de dançarinos com os braços entrelaçados, segue praticamente colada Ă linha seguinte. Nas linhas da frente seguem os mais jovens. As mulheres podem vir-se juntar ao grupo: passam o braço por debaixo do de seu parceiro, segurando seu ombro e ali repousando a cabeça; elas sempre formam no exterior do grupo, nunca ficando entre dois homens. Uma mulher dança com seu marido, ou entĂŁo com seu apöno, seu “namorado”; nesse caso, seu marido deve dançar com a esposa daquele homem, no outro extremo da mesma fila.
Um opirahĂ«Â pode ser organizado por simples diversĂŁo, por um grupo de jovens; ou pode ser parte do ciclo de danças noturnas executadas durante a preparação do cauim, e que tem seu clĂmax na noite da festa; ele Ă© tambĂ©m a forma de comemoração da morte de uma onça ou de um inimigo. Seu modelo, porĂ©m, Ă© sempre o mesmo: o opirahĂ«Â Ă© uma dança de guerra. Todos os participantes devem portar suas armas, ou pelo menos uma flecha, carregada verticalmente contra o peito; e os cantos de opirahĂ«Â sĂŁo “mĂşsica dos inimigos”, canções que falam de combates. O paradigma do cantador Ă© o guerreiro.
 Parentesco
Como parece ser o caso em toda sociedade nĂŁo-industrial, pequena e morfologicamente simples, a vida cotidiana arawetĂ© reserva Ă s categorias e atitudes de parentesco um papel maior. As formas de cooperação econĂ´mica, os arranjos residenciais, os alinhamentos polĂticos, tudo isso Ă© função das relações de parentesco, por consangĂĽinidade ou afinidade, entre as pessoas. O casamento nĂŁo Ă© uma simples uniĂŁo entre dois indivĂduos, mas uma aliança entre suas respectivas parentelas, que pode (e idealmente deve) consolidar-se por outras uniões matrimoniais entre esses grupos de parentes.
Os ArawetĂ© se casam muito cedo, as mulheres por volta dos 12 anos, os homens, dos 15; as uniões sĂŁo muito instáveis atĂ© o nascimento do primeiro filho (o que se dá por volta dos dezesseis anos para as mulheres), quando entĂŁo se tornam sĂłlidas e dificilmente se rompem antes da morte de um dos cĂ´njuges. Como nĂŁo se concebe a vida de uma pessoa adulta fora do estado matrimonial, dificilmente alguĂ©m fica solteiro por muito tempo: pessoas mais velhas, assim que enviĂşvam, costumam formar uniões com jovens que ainda nĂŁo atingiram a idade de casar com alguĂ©m de sua faixa de idade. É assim relativamente comum ver homens de sessenta anos morando com meninas de dez anos, ou de mulheres de 50 anos com rapazolas de doze. Trata-se de arranjos sobretudo econĂ´micos, em que o casal funciona como uma unidade de residĂŞncia, de produção e consumo alimentar; mas os jogos sexuais nĂŁo estĂŁo excluĂdos.
O termo genĂ©rico para “parente” Ă©Â anĂ®, que em sua acepção mais restrita denota os irmĂŁos de mesmo sexo que ego; meus parentes sĂŁo meus di, meus “outros-iguais”, gente semelhante a mim. O termo para “nĂŁo-parente” Ă©Â tiwĂŁ, cuja determinação genealĂłgica mais prĂłxima sĂŁo os primos cruzados de mesmo sexo; os tiwĂŁÂ sĂŁo amite, gente “diferente”. TiwĂŁÂ Ă© um termo ambĂguo. Ele traz uma conotação agressiva ou ‘picante’, e nĂŁo se costuma usá-lo como vocativo para um outro ArawetĂ©. Ele indica uma ausĂŞncia de relação de parentesco, um vácuo que pede preenchimento. Um tiwĂŁÂ Ă© uma possibilidade de relação: um cunhado ou um amigo potenciais. Os tiwĂŁÂ se tratam apenas por nomes pessoais. TiwĂŁÂ Ă© o vocativo com que os ArawetĂ© tratam os brancos cujo nome desconhecem; e Ă© o termo de tratamento recĂproco entre um matador e o espĂrito do inimigo morto. Aplicado a nĂŁo-ArawetĂ©, ele particulariza a ‘relação’ genĂ©rica negativa que há entre os bĂŻde e os awĂ®. Chamar alguĂ©m pelo vocativo awî é impensável, pois awî sĂŁo seres “para matar” (yokĂŁ mi), com os quais nĂŁo se fala; chamar um inimigo de tiwĂŁ, assim, Ă© criar este mĂnimo de relação que reconhece ao outro a condição de humano (bĂŻde).
A terminologia de parentesco arawetĂ© Ă© extensa, e se organiza segundo princĂpios bastante diferentes daqueles que subjazem a nossa forma de classificar os parentes. Basta aqui observar que os ArawetĂ© chamam de “irmĂŁo”, “irmĂŁ”, “filho”, “filha”, “pai”, “mĂŁe”, uma quantidade de pessoas que para nĂłs seriam consideradas como primos, sobrinhos ou tios, e Ă s vezes simples parentes distantes. Em princĂpio, todas as mulheres classificadas como “mĂŁe”, “irmĂŁ” ou “filha” sĂŁo proibidas a ego dos pontos de vista sexual e matrimonial; digo “em princĂpio” porque essa norma se aplica com rigor apenas para as parentas mais prĂłximas destas categorias, as primeiras delas sendo a mĂŁe, irmĂŁs ou filhas ‘reais’ – aquelas consideradas como tendo gerado ego, ou tendo sido geradas pela mĂŁe ou esposa de ego. O casamento com a filha da irmĂŁ (a sobrinha uterina) Ă© considerado permissĂvel, e mesmo desejável, embora a maioria dos ArawetĂ© entenda que este tipo de uniĂŁo sĂł Ă© realmente apropriado quando se trata de uma “sobrinha” distante. O casamento com a sobrinha uterina, chamado em antropologia de casamento avuncular (do latim avunculus, “tio materno”, pois se trata de uma uniĂŁo entre um tio materno e sua sobrinha uterina), Ă© bastante comum entre os povos Tupi-Guarani e Caribe da AmĂ©rica do Sul.
Ao contrário da maioria das sociedades indĂgenas brasileiras, os ArawetĂ© nĂŁo consideram que todos os membros do grupo sejam aparentados; para uma pessoa qualquer, muitos dos demais moradores da aldeia do Ipixuna sĂŁo tiwĂŁ, nĂŁo-parentes. A presença de tantos tiwĂŁÂ em uma sociedade de duzentas pessoas se explica em parte pela separação longa entre os grupos meridional e setentrional de ArawetĂ©, antes do contato; os tiwĂŁÂ eram em geral qualificados como iwi rowãñã ti hĂŁ, “gente do outro lado da terra”, isto Ă©, de um outro bloco de aldeias.
O ideal verbalmente expresso define os primos cruzados como os cĂ´njuges por excelĂŞncia. O casamento com a filha do irmĂŁo da mĂŁe Ă© chamado “casamento do iriwĂŁ“, um pássaro que em um mito se casa com a filha da cobra jararaca, seu tio materno; o casamento com a filha da irmĂŁ do pai Ă© o “casamento do gaviĂŁo-real”, conforme outro mito. Ă© comum que os adultos determinem os cĂ´njuges futuros das crianças, emparelhando-as a seus primos cruzados. De 1983 a 1991, observei que apenas um pequeno nĂşmero desses casais chegou a estabilizar-se; mas muitos dos primeiros casamentos deram-se entre primos cruzados.
Outra forma de compromisso matrimonial Ă© aquela em que um tio materno ou uma tia paterna reserva uma criança para futuro cĂ´njuge, pedindo-a Ă prĂłpria irmĂŁ (mĂŁe da criança) ou irmĂŁo (pai da criança). Esses casamentos (e aqueles os com primos cruzados) sĂŁo vistos como uma forma de se manterem juntos parentes prĂłximos, ou mais precisamente como o resultado da ligação afetiva entre irmĂŁo e irmĂŁ. “Desejam-se” (pitĂŁ) os filhos dos irmĂŁos de sexo oposto, para si mesmo ou para os prĂłprios filhos – assim, dizem os ArawetĂ©, “nĂŁo nos dispersamos”. Observa-se por fim uma tendĂŞncia Ă repetição de alianças entre parentelas, gerando redes de aparentamento muito intrincadas.
NĂŁo conheço palavra especĂfica para “incesto”. Há um termo, que nĂŁo sei traduzir, que qualifica uniões nĂŁo muito prĂłprias, awĂ®de. Ele se aplica a casamentos entre irmĂŁos distantes e a uniões entre tios e sobrinha reais. Menos adequados que os casamentos com tiwĂŁ, os casamentos awĂ®de nĂŁo sĂŁo a rigor incestuosos. O incesto (que se descreve como um “comer” a mĂŁe, a irmĂŁ, etc.) Ă© algo muito perigoso: o casal culpado morre de ha’iwĂŁ, definhamento que sanciona toda infração cĂłsmica; e pior que tudo, os inimigos se abatem sobre a aldeia. As aldeias de incestuosos, diz-se, costumam acabar tĂŁo crivadas de flechas inimigas que os urubus sequer conseguem bicar os cadáveres.
O tom das relações interpessoais Ă© bastante relaxado, e as posições de parentesco sĂŁo pouco diferenciadas em termos das atitudes. Uma Ăşnica relação Ă© definida como envolvendo “medo-vergonha”, por definição: entre irmĂŁo e irmĂŁ. (Digo “por definição” porque outras situações envolvem “medo-vergonha” temporário e extrĂnseco. Assim, todo jovem que vai residir uxorilocalmente sente-se constrangido diante dos sogros, mas isso rapidamente se dissipa). Isso nĂŁo significa evitação: irmĂŁos de sexo oposto visitam-se freqĂĽentemente, demonstram grande estima recĂproca, e sĂŁo o principal apoio moral de uma pessoa. Uma mulher recorre ao irmĂŁo mais que ao marido, em uma briga com estranhos; se estoura uma querela conjugal, sĂŁo sempre os irmĂŁos de sexo oposto que acorrem a consolar os cĂ´njuges. Essa solidariedade Ă© respeitosa, e as brincadeiras de fundo sexual tĂŁo apreciadas pelos ArawetĂ© jamais tĂŞm por objeto um germano de sexo oposto.
O ataque de inimigos sobre uma aldeia tornada “mole” (time) e desprevenida sanciona outra falta grave Ă s normas sociais: a hostilidade fĂsica ou mesmo verbal entre irmĂŁo e irmĂŁ. Vemos assim que as infrações simĂ©tricas da distância prĂłpria entre irmĂŁo e irmĂŁ – amor demais ou de menos, digamos – atingem a sobrevivĂŞncia do grupo inteiro, o que sugere a centralidade desta relação na vida social arawetĂ©.
Irmãos de mesmo sexo são igualmente solidários, e são os parceiros de trabalho mais comuns. A liberdade entre eles é grande, embora não chegue nunca à camaradagem jocosa dos apihi-pihã (ver abaixo). Irmãs, sobretudo, são extremamente unidas. Note-se contudo que a ordem de nascimento, marcada aliás na terminologia de parentesco, gera uma diferença que se exprime na autoridade dos mais velhos sobre os mais jovens.
As relações conjugais arawetĂ© sĂŁo notavelmente livres, mas ambivalentes. O contato corporal pĂşblico Ă© admitido, e quando as coisas vĂŁo bem os casais sĂŁo muito carinhosos. Por outro lado, cenas de ciĂşme sĂŁo freqĂĽentes. Os maridos de mulheres jovens sĂŁo muito ciosos, e vigiam de perto as esposas. Quando a uniĂŁo consolida-se com o nascimento de filhos, sĂŁo as mulheres que passam a demonstrar ciĂşme, especialmente se mais velhas que o marido. A violĂŞncia fĂsica (nĂŁo muito violenta, na verdade) Ă© comum entre casais jovens, e em geral as mulheres sĂŁo mais agressivas. Fora da relação conjugal (e das rarĂssimas sovas dadas em filhos pequenos) nĂŁo há qualquer espaço para a violĂŞncia na sociedade arawetĂ©, que nĂŁo se traduza imediatamente em choque armado. Por isso o casamento fica sobrecarregado, canalizando tensões que pouco tĂŞm a ver com ele. Isso responde, entre outras coisas, pela alta instabilidade conjugal.
A diferença de idade entre os cĂ´njuges Ă© um traço comum nas sociedades tupi-guarani. Ela se acha tambĂ©m entre os ArawetĂ©, mas trata-se de uniões secundárias e temporárias, nas quais os velhos iniciam sexualmente meninas prĂ©-pĂşberes, e as velhas acolhem rapazes sem esposa disponĂvel.
Entre afins de mesmo sexo e geração, as relações sĂŁo pouco marcadas. NĂŁo há evitação de qualquer espĂ©cie, nem solidariedade especial, como se observa em tantas sociedades indĂgenas. “Cunhados sĂŁo como irmĂŁos”, dizem os ArawetĂ©: saem para caçar juntos, podem ficar muito amigos, ou podem se ignorar. Como parte dos laços de solidariedade entre irmĂŁo e irmĂŁ, eles estĂŁo entre os convidados mais freqĂĽentes ao pátio de uma pessoa. Note-se entretanto que o costume de irmĂŁos de sexo oposto virem consolar os cĂ´njuges nas brigas conjugais traduz uma Ăłbvia tensĂŁo latente entre cunhados de mesmo sexo, que nunca vi passar de admoestações curtas mas veementes por ocasiĂŁo das desavenças conjugais – ocasiĂŁo, portanto, em que o marido da irmĂŁ e a irmĂŁ do marido fazem valer seus direitos fraternais contra os respectivos cunhados. Dois cunhados ou cunhadas podem ter relações sexuais com uma terceira pessoa, mas nĂŁo podem entrar em relações de amizade sexual cerimonial (apihi-pihĂŁ) enquanto estiverem ligados como afins: partilha de cĂ´njuges e afinidade se excluem.
Entre afins de sexo oposto e mesma geração as relações sĂŁo livres. A relação de dois irmĂŁos de mesmo sexo frente aos cĂ´njuges respectivos Ă© concebida como sendo de sucessĂŁo potencial: com a morte de um dos irmĂŁos, Ă© comum que o outro herde seu cĂ´njuge. As relações sexuais entre, por exemplo, um homem e a esposa de seu irmĂŁo sĂŁo semi-clandestinas, e no máximo tacitamente toleradas pelo irmĂŁo; caso tornem-se conspĂcuas, um dos envolvidos termina propondo uma troca de cĂ´njuges, o que Ă© freqĂĽente. Essa relação de equivalĂŞncia diacrĂ´nica entre irmĂŁos de mesmo sexo se opõe Ă partilha simultânea de cĂ´njuges entre os apihi-pihĂŁ.
Entre as gerações consecutivas, o quadro de atitudes Ă© variado, dependendo da fase do ciclo de vida e da situação residencial. Há pouca ĂŞnfase em estruturas de autoridade baseadas na diferença geracional. Entre pais e filhos concebe-se uma comunidade de substância, e suas relações sĂŁo afetivamente intensas. Há uma muito vaga idĂ©ia de que os filhos sĂŁo “coisa do pai”, as filhas “coisa da mĂŁe”, o que traduz apenas a identidade de gĂŞnero e suas conseqĂĽĂŞncias econĂ´micas, pois a teoria da concepção Ă© patrilateral e a organização de parentesco, cognática.
A vida social ArawetĂ© manifesta uma forte tendĂŞncia matrilocal, a qual rege as soluções residenciais. O laço mĂŁe-filhos Ă© mais intenso que o laço pai-filhos, e especialmente a relação mĂŁe-filha. É difĂcil caracterizar com precisĂŁo situação pĂłs-marital. Há algum desacordo quanto Ă norma. Os homens jovens dizem que o ideal Ă© a virilocalidade; os mais velhos afirmam que, tradicionalmente, os rapazes domiciliavam-se no setor ou na aldeia da esposa, e que sĂł apĂłs o nascimento do primeiro filho Ă© que podiam voltar Ă aldeia de origem (se conseguissem convencer a esposa). Inclino-me pelo parecer dos mais velhos, embora tanto eles quanto os rapazes estejam certamente exprimindo as normas do modo que mais lhes favorece. A uxorilocalidade Ă© efetivamente um princĂpio conceitual básico para os ArawetĂ©. Ela Ă© explicada, caracteristicamente, com argumentos psicolĂłgicos: afirma-se que as mĂŁes nĂŁo querem se separar das filhas, e que, ademais, sogra e nora nunca se dĂŁo bem, sobretudo se moram na mesma seção residencial. Seja qual for a solução adotada, uxorilocal ou virilocal, o que se tem Ă© sempre uma residĂŞncia conceitualmente matrilocal: o cĂ´njuge de fora Ă© definido como morando haco pi, “junto Ă sogra”, e o de dentro como ohi pi, “junto Ă mĂŁe”.
A situação real depende de vários fatores, notadamente do peso polĂtico das parentelas envolvidas, do nĂşmero e composição de sua prole, das alianças passadas. Hoje em dia, diz-se, nĂŁo importa muito a solução residencial, uma vez que há uma sĂł aldeia. O fator que continua determinante Ă© a alocação da força de trabalho. A uxorilocalidade Ă© uma situação essencialmente econĂ´mica: o genro passa a trabalhar com o sogro, ou melhor, na roça de milho da sogra. Por isso, um casal-cabeça de famĂlia extensa sĂł permite a saĂda de uma filha para casar se conseguir reter um filho (atrair uma nora), ou se casar mais uma filha, repondo o genro ‘perdido’. A boa administração da famĂlia consiste em arrumar casamentos que mantenham o máximo nĂşmero de filhos, de ambos os sexos, na unidade familiar de origem (e sobretudo na roça materna). Como isso Ă© mais ou menos o que todos procuram fazer, o sistema deriva em direção Ă uxorilocalidade.
NĂŁo há regras de evitação entre afins de gerações adjacentes, embora prevaleça certa reserva, e uma comensalidade obrigatĂłria. Conflitos entre sogro e genro sĂŁo raros, mas ocorrem, sobretudo se o segundo mostra-se negligente no trabalho agrĂcola (em especial na fase da derrubada). Já os casamentos virilocais sĂŁo em geral tensos na relação com o casal mais velho; nos dois Ăşnicos casos em que as esposas tinham mĂŁe viva, os choques entre sogra e nora – na verdade entre as mĂŁes dos cĂ´njuges – eram costumeiros.
Quando eu perguntava se um rapaz, ao mudar-se de aldeia para casar, não ficava intimidado e com saudades de casa, respondiam-me sempre que sim, mas que, além de terem-se parentes na aldeia da esposa, logo criavam-se laços de apihi-pihã entre o recém-casado e os tiwã de lá.
 Amizade
O casamento nĂŁo Ă© objeto de nenhuma cerimĂ´nia, e a acelerada circulação matrimonial dos jovens faz dele um negĂłcio corriqueiro. No entanto, sempre que uma uniĂŁo se torna pĂşblica com a mudança de domicĂlio de alguĂ©m, produz-se uma sutil comoção na aldeia. O novo casal começa imediatamente a ser visitado por outros casais, seu pátio Ă© o mais alegre e bulhento Ă noite; ali se brinca, os homens se abraçam, as mulheres cochicham e riem. Dentro de alguns dias, nota-se uma associação freqĂĽente entre o recĂ©m-casado e um outro homem, bem como entre sua mulher e a mulher deste. Os dois casais começam a sair juntos Ă mata, a pintar-se e decorar-se no pátio do casal mais novo. Está criada a relação de apihi-pihĂŁ.
A marca caracterĂstica da relação apihi-pihĂŁÂ Ă© a “alegria”: tori. Os apihi-pihĂŁÂ (amigos de mesmo sexo) mantĂŞm um convĂvio de camaradagem jocosa, sem nenhuma conotação agressiva; eles oyo mo-ori, “alegram-se reciprocamente”: estĂŁo sempre abraçados, sĂŁo companheiros assĂduos na mata, usam livremente dos bens do outro. Quando os homens da aldeia saem para as caçadas coletivas, as mulheres apihi-pihĂŁÂ vĂŁo dormir na mesma casa. Na formação da dança do cauim, Ă© esse o laço focal entre os homens. Os amigos de sexo oposto (a apihi e o apino) recebem o epĂteto de tori pĂŁ: “alegrador”.
O cimento dessa relação Ă© a mutualidade sexual. Os apihi-pihĂŁÂ trocam de cĂ´njuges temporariamente, segundo dois mĂ©todos: oyo iwi (“morar junto”), pelo qual os homens vĂŁo Ă noite Ă casa das apihi, ocupando a rede do amigo, e de manhĂŁ retornam para as esposas; e oyo pepi (“trocar”), pelo qual as mulheres passam a residir por alguns dias na casa dos apino. Em ambos os casos, porĂ©m, o quarteto Ă© sempre visto junto, no pátio de um dos casais. Os casais trocados costumam sair Ă cata de jabotis, tomando direções diversas; Ă noite se reĂşnem para comer o que trouxeram. Essa mutualidade sexual, assim, Ă© uma alternância, nĂŁo um sistema de ‘sexo grupal’.
O contexto privilegiado para a efetuação da relação de amizade Ă© a mata, especialmente no perĂodo da dispersĂŁo das chuvas, quando pares de casais assim ligados acampam juntos (no começo da estação do mel, em setembro de 1982, as unidades mĂnimas de coleta quase sempre envolviam grupos de apihi-pihĂŁ). Na floresta, os casais trocados saem para caçar e tirar mel, reunindo-se Ă noite: “o dia Ă© da apihi, a noite da esposa”. As expressões “levar para caçar”, “levar para tirar mel”, “levar para o mato” evocam imediatamente os laços apihi/apino. Para saber se um homem era mesmo apino de uma mulher (em vez de simples amante ocasional), o critĂ©rio decisivo era este: “sim, pois ele a levou para o mato em tal ocasiĂŁo”. A relação Ă© assim orientada – o homem leva a mulher Ă floresta, domĂnio masculino. A floresta, o jaboti e o mel sĂŁo os sĂmbolos da ‘lua de mel’ ArawetĂ©, que nĂŁo se faz entre esposo e esposa, mas entre apihi e âpino; e nĂŁo envolve um, mas dois casais.
O ciĂşme está por definição excluĂdo desta relação; ao contrário, ela Ă© a Ăşnica situação de extra-conjugalidade sexual que envolve seu oposto, a cessĂŁo benevolente do cĂ´njuge ao amigo. Mesmo entre irmĂŁos, que tĂŞm acesso potencial aos respectivos cĂ´njuges, há margem para ciĂşmes reprimidos e para desequilĂbrios: um homem pode freqĂĽentar a esposa do irmĂŁo sem que o mesmo saiba, queira ou retribua. Já a relação apihi-pihĂŁÂ pressupõe a ostensividade e a simultaneidade: Ă© uma relação ritual de mutualidade.
O complexo simbĂłlico da relação apihi-pihĂŁÂ Ă© absolutamente central na visĂŁo de mundo arawetĂ©. Ter amigos Ă© sinal de maturidade, assertividade, generosidade, força vital, prestĂgio. A apihi é ‘a mulher’, pura positividade sexual, sem o fardo da convivĂŞncia domĂ©stica. E um apihi-pihĂŁÂ Ă© mais que um irmĂŁo, em certo sentido; Ă© uma conquista sobre o territĂłrio dos tiwĂŁ, dos nĂŁo-parentes, estabelecendo uma identidade ali onde sĂł havia diferença e indiferença: Ă© um amigo.
A freqĂĽente associação econĂ´mica entre quartetos de apihi-pihĂŁÂ nĂŁo envolve trabalho agrĂcola, para os homens (as mulheres podem ir juntas Ă roça tirar milho, pilá-lo etc.), mas a caça: a cooperação agrĂcola supõe pertencimento Ă mesma famĂlia extensa ou setor residencial, o que nĂŁo pode ocorrer entre apihi-pihĂŁ. De qualquer forma, a provĂncia por excelĂŞncia da amizade Ă© a mata no perĂodo em que o milho “oculta-se” (ti’Ă®, como se diz tambĂ©m da lua nova).
É clara a compensação entre a amizade e a uxorilocalidade: para o jovem recĂ©m-casado, o amigo Ă© o contrário do sogro em cuja roça ele deve trabalhar. Nas festas, os apino e apihi se pintam, enfeitam e perfumam mutuamente; quando se vĂŞ um quarteto profusamente decorado, com muitos brincos, a cabeça emplumada de branco, o corpo brilhando de urucum, rindo e se abraçando, nĂŁo há dĂşvida: sĂŁo apihi-pihĂŁ. Caça, dança, sexo, pintura, perfume, o mundo dos apihi-pihĂŁÂ Ă© um mundo ideal. No cĂ©u, a relação entre os deuses e as almas dos mortos Ă© sempre representada pela amizade sexual. Os mortos se casam no cĂ©u com os MaĂŻ, tĂŞm filhos, vivem como aqui. Mas os cantos xamanĂsticos sempre põem em cena as almas acompanhadas de seus apino ou apihi celestes – como convĂ©m Ă s ocasiões festivas. Um dos eufemismos para a morte de alguĂ©m alude a este caráter celestial da amizade: “iha ki otori pĂŁ kati we” – “ele se foi, para junto de seu ‘alegrador'”.
Um casal pode ter mais de um outro associado como apihi-pihã, e não há nenhum adulto na aldeia que não chame pelo menos uma meia-dúzia de gente pelos termos da amizade. Mas essas relações se atualizam consecutivamente; é raro que um casal tenha mais que um só outro como parceiro ativo em um dado momento, devido à dedicação exigida pela amizade. As relações não são transitivas: os amigos de meus amigos não são necessariamente meus amigos. É usual que dois irmãos, que não podem se chamar pelos termos de amizade nem partilhar cônjuges, tenham casais de amigos em comum. Trata-se portanto de uma relação diádica e local, envolvendo os casais da aldeia numa rede que se superpõe à teia de parentesco.
Recasamentos por viuvez ou divórcio suscitam a necessidade de se decidir sobre a renovação dos laços de amizade. Se um membro do quarteto morre, é considerado desejável que se reatualizem as relações, promovendo uma troca oyo iwi.
Não é incomum que as trocas temporárias de cônjuges terminem virando definitivas. Aà se diz em sentido próprio que os homens trocaram (oyo pepi) de esposas. A troca definitiva desfaz a relação, que perde o seu sentido.
Embora a relação de amizade envolva dois casais e centre-se no acesso sexual ao cĂ´njuge do amigo, os laços entre parceiros de mesmo sexo sĂŁo os fundamentais; sĂŁo eles que persistem preferencialmente apĂłs viuvez ou divĂłrcio, e que precisam ser reatualizados. O amigo de sexo oposto Ă© sobretudo um meio de se produzir um apihi-pihĂŁÂ – e isso vale particularmente para os homens. Se um cunhado Ă© o que nĂŁo se pode deixar de ‘obter’ ao se conseguir uma esposa, um amigo Ă© o que se quer obter ao se estabelecer relações com uma apihi.
Os apihi-pihĂŁÂ sĂŁo recrutados entre os tiwĂŁ, por definição: isto Ă©, transformam em tiwĂŁÂ aqueles que assim se ligam. IrmĂŁos reais nĂŁo podem ser amigos. Os ArawetĂ© sempre me corrigiam, quando eu designava dois irmĂŁos por apihi-pihĂŁÂ por constatar que haviam trocado (definitiva e domesticamente) de esposas: “apenas aos tiwĂŁ Ă© que chamamos apihi-pihĂŁ“. Essa distinção Ă© importante, pois um tiwĂŁ Ă© o oposto de um irmĂŁo, mas quando um dos primeiros Ă© transformado em amigo, ele partilha de uma semelhança com o irmĂŁo, o acesso lĂcito Ă s respectivas esposas.
Há, enfim, duas relações centrais no mundo social arawetĂ©: entre irmĂŁo e irmĂŁ, e entre amigos de mesmo sexo. A primeira se caracteriza pela solidariedade e respeito, e Ă© o ponto de apoio da afinidade e da reciprocidade; a segunda pela liberdade e camaradagem, e Ă© o foco da mutualidade. As relações entre cunhados e irmĂŁos de mesmo sexo sĂŁo pouco marcadas, mas parecem ocultar antagonismos latentes – como demonstra o apoio do germano de sexo oposto nas querelas conjugais, e a competição e ciĂşmes velados que juntam e opõem irmĂŁos frente Ă s mesmas mulheres. A relação entre marido e mulher opõe-se Ă quela entre irmĂŁo e irmĂŁ por manifestar livremente os dois aspectos interditos nesta: sexo e hostilidade. Já a relação entre amigos de sexo oposto Ă© idealmente positiva (e, positivamente, ideal): apino e apihi nĂŁo brigam, ou deixam automaticamente de estar nessa relação. Finalmente, a “alegria” da amizade entre amigo e amiga se opõe ao “medo-vergonha” (respeito) entre irmĂŁo e irmĂŁ.
 As idades
Produzir uma criança Ă© um trabalho lento, que exige cĂłpulas freqĂĽentes e grande dispĂŞndio de sĂŞmen, de forma a aquecer o feto e a formar paulatinamente seu corpo. Todos os componentes potenciais da pessoa estĂŁo contidos na semente paterna. O genitor Ă© concebido pelos ArawetĂ© como o que “faz” ou “dá” a criança. A mĂŁe Ă© um hiro, receptáculo ou continente desta substância seminal, onde se processa sua transformação em criança.
Os ArawetĂ©, ao contrário do que sustentam outras culturas indĂgenas, nĂŁo consideram que o sangue menstrual desempenhe qualquer papel na concepção humana. Quando eu observava a semelhança fĂsica entre mĂŁes e filhos, todos assentiam sem nenhuma surpresa, dando-me uma explicação gramaticalmente abstrata: a semelhança se deve ao fato de que o esperma vira criança ohi ropĂŻ, “atravĂ©s (ao longo) da mĂŁe”. Essa era a mesma razĂŁo aduzida para explicar porque uma pessoa deve fazer abstinĂŞncia alimentar e sexual tambĂ©m quando um parente pelo lado materno fica doente. Os ArawetĂ© entendem que existe um laço de substância entre os parentes, de tal forma que, se uma pessoa adoece, seus parentes prĂłximos devem evitar praticar ações e ingerir alimentos que possam piorar seu estado. Em suma, Ă teoria patrilateral da concepção soma-se o reconhecimento bilateral da filiação, dos interditos de incesto e da abstinĂŞncia por doença.
A biologia araweté sustenta que uma criança pode ser formada pelo sêmen de mais de um genitor; isto é, mais de um inseminador pode cooperar ou revezar-se na produção de uma criança. Recordemos que as relações de amizade apihi-pihã põem uma jovem esposa em contato sexual regular com dois homens. É considerado positivo, para a saúde de um bebê, que ele tenha sido formado por mais de um genitor: o número ideal parece ser de dois ou no máximo três; mais que isso acarreta partos dolorosos, ou o bebê nasce com a pele manchada.
As precauções do casal envolvido na concepção sĂŁo poucas, durante a gestação, e algumas continuam apĂłs o parto. NĂŁo devem comer anta, pois seu espĂrito pisotearia a barriga da mĂŁe; ou usar de milho cujo cesto de transporte se partiu; o homem nĂŁo pode comer de fĂŞmeas grávidas de animais. NĂŁo devem ainda comer pernis de veado e mutum, o que enfraqueceria as pernas da criança. Os homens devem tomar cuidado na mata, pois as cobras tentarĂŁo mordĂŞ-los.
Logo que nasce, a criança Ă© banhada em água morna. Seu pai fura-lhe as orelhas, raspa os cabelos que ultrapassam a linha das tĂŞmporas, e ela Ă© entĂŁo “consertada” (mo-kati) por alguĂ©m experiente: achata-se suavemente seu nariz, afastam-se as orelhas para fora, massageia-se o peito para “abri-lo”, afastam-se as sobrancelhas, ajusta-se o maxilar inferior, empurram-se os braços e os dedos da mĂŁo na direção do ombro, apertam-se as coxas uma contra a outra, separam-se os cabelos Ăşmidos com um pauzinho.
Os pais entram em reclusĂŁo, passando a maior parte do tempo em casa e dependendo dos parentes para tarefas domĂ©sticas essenciais, como cozinhar e buscar água. Horas apĂłs o parto, eles devem tomar a infusĂŁo amarga da casca da árvore iwirara’i (Aspidosperma sp.) – a mesma que se toma na primeira menstruação de uma jovem e quando se matou um inimigo na guerra. Essa medida pareceria ter assim uma relação com o sangue que se acumula no corpo nestes estados, e que deve ser purgado. Mas a explicação aduzida pelos ArawetĂ© Ă© diferente: toma-se o chá de iwirara’i para poder comer jaboti sem sufocar pela inchação da glote. Trata-se do jaboti de patas vermelhas (Geochelone carbonaria), carne proibida aos pais de recĂ©m-nascidos, mulheres na primeira menstruação e matadores de inimigo. Todos os homens que participaram da concepção do bebĂŞ devem tomar dessa infusĂŁo, mas apenas o genitor principal – via de regra, o marido da parturiente – segue rigorosamente as demais restrições.
A mĂŁe, na noite subseqĂĽente ao parto, deve submeter-se Ă operação imone, recondução de sua alma ao corpo, executada por um pajĂ©. Todo trauma fĂsico ou psicolĂłgico produz esse perigoso descolamento entre alma e corpo.
As restrições puerperais sĂŁo variadas, e sĂŁo sobretudo levadas a sĂ©rio pelos pai de um primeiro filho. Elas sĂŁo mais rigorosas enquanto o umbigo nĂŁo seca e cai; vĂŁo-se relaxando Ă medida que a criança fica com o “pescoço duro”, em seguida começa a rir (a “ter consciĂŞncia”, ika’aki), depois a andar. Seu tĂ©rmino Ă© imprecisamente marcado, e a consolidação definitiva da criança demora bem mais que esse perĂodo de restrições de seus pais.
Algumas das restrições visam proteger os prĂłprios pais, agora definidos como ta’i ñã e memi ñã, “donos de filho”. NĂŁo se devem expor demasiado ao sol e Ă lua, ou o “excremento” desses astros os enegrecerĂŁo; nĂŁo podem carregar água, andar sobre pedras ou solo áspero, ou certos espĂritos da mata flecharĂŁo seus pĂ©s. A mais importante precaução Ă© tomada pelo pai: ele nĂŁo pode ir Ă mata enquanto o umbigo do filho nĂŁo seca, ou atrairá multidões de cobras surucucus, jararacas e jibĂłias, que o picarĂŁo ou engolirĂŁo vivo. Isso significa que o homem se vĂŞ impossibilitado de exercer a atividade que o define como adulto casado: a caça.
Outras restrições protegem o bebê: os pais não tocam em espelhos e pentes, pois isso lhe causaria febres e dores; não tocam em couro de onça, ou sua pele ficaria manchada. Evitam-se esforços que possam repercutir na criança: carregar peso, pilar milho, derrubar árvores.
As restrições de ingestĂŁo de substâncias sĂŁo mais numerosas. Os pais nĂŁo podem cozinhar, nem comer coisas muito quentes. A mĂŁe nĂŁo pode fumar; o pai sĂł o faz atravĂ©s de um chumaço de algodĂŁo. A maioria dos interditos imediatamente em vigor apĂłs o parto, como o que incide sobre a carne de jaboti vermelho, visa proteger a saĂşde dos pais; os interditos de longa duração, ao contrário, protegem a criança. Assim, a carne de vários animais sĂł pode ser consumida por seus pais quando a criança já começou a “rir”; outras, sĂł depois que ela começou a andar. As fĂŞmeas grávidas de animais nĂŁo sĂŁo comidas atĂ© que a criança tenha uns trĂŞs anos (as mulheres grávidas podem comĂŞ-las, entretanto).
O consumo dessas carnes proibidas, e certas ações como cozinhar ou fumar, acarretariam o hapi, a “queima” da criança. Trata-se de uma espĂ©cie de combustĂŁo interna que se manifesta como febre, dessecamento e emagrecimento rápido do bebĂŞ. A idĂ©ia subjacente parece ser a de que o recĂ©m-nascido Ă© um ser volátil, que deve ficar longe do contato com coisas quentes. NĂŁo se pode tambĂ©m pintá-lo de urucum, ou sua pele descascaria como se sapecada no fogo.
O sexo e a cauinagem sĂŁo as proibições mais estritas. Ambas as coisas sĂł podem ser feitas apĂłs a criança começar a engatinhar (diziam-me os pais) ou a andar (diziam-me as mĂŁes). Antes disso – e mesmo depois, se o pajĂ© nĂŁo fechar o seu corpo -, ela morreria em meio a convulsões e vĂ´mitos. A abstinĂŞncia sexual parece ser mais demorada para a mĂŁe que para o pai: este, apĂłs alguns meses, pode procurar sua apihi “para se esfriar”. As ações da mĂŁe sĂŁo mais diretamente nocivas Ă criança, que está sempre colada a ela; sĂŁo as mĂŁes que se preocupam em pedir que algum pajĂ© feche o corpo de seus filhos. A razĂŁo disto Ă© que elas os amamentam. Para o leite passa tudo que entra no corpo da mĂŁe – o sĂŞmen inclusive. Passa tambĂ©m, como vimos, o afeto: os homens sempre visitam a casa natal, as mulheres se recusam a casar virilocalmente, “porque nunca se esquece o leite tomado”.
Com duas semanas de nascidas, as crianças começam a comer cará, batata e banana mastigados pela mĂŁe. Mandioca, milho, outras frutas e carne sĂł sĂŁo introduzidos na dieta quando elas já estĂŁo “prontas” (aye), isto Ă©, quando já demonstram “consciĂŞncia”. É entĂŁo que recebem o nome, e podem ser pintadas de urucum: já sĂŁo completamente humanas.
A noção de “ter consciĂŞncia” – tradução mais geral do verbo ka’aki -define o grau de humanidade dos infantes. Ela nĂŁo se confunde com o falar, pois lhe Ă© cronologicamente anterior. Parece designar a capacidade da criança responder a estĂmulos comunicativos; o principal sinal disso Ă© o riso. Se um bebĂŞ morre antes de manifestar consciĂŞncia, mesmo seus pais o chorarĂŁo pouco.
Por alguns anos, a pessoa da criança não está inteiramente estabilizada. Sua imagem vital (î) desprende-se com facilidade do corpo, especialmente devido à cobiça de Iwikatihã, o Senhor do Rio. Crianças até quatro anos são freqüentemente submetidas ao imone, quando o pajé traz de volta a alma errante e a consolida no corpo.
Embora haja esta preocupação em espacejar os nascimentos, ter filhos é um valor essencial. As crianças são adoradas e mimadas por toda a aldeia; mulheres e homens disputam o privilégio de passear com o recém-nascido ao colo. Se uma mulher morre deixando uma criança de peito, outras se incumbem de amamentá-la.
Dos trĂŞs anos em diante, quando começam a ter autonomia de movimentos, as crianças sĂŁo referidas como ta’i oho, “filhotes grandes”, ou como “homenzinhos” e “mulherzinhas”. Entre os sete e onze anos, os meninos sĂŁo classificados como piri a d;i, “gente verde (nĂŁo-madura)”. Nessa fase, saem para caçar e pescar nas redondezas, e acompanham os pais nas expedições de caça. Começam tambĂ©m a erguer suas casinhas ao lado das dos pais. Por volta dos doze anos, decide-se que Ă© tempo de se lhes amarrar o prepĂşcio; o pĂŞnis já está “cheio” e a glande pode-se desnudar, o que Ă© motivo de vergonha.
A partir dos doze anos, os rapazes iniciam uma longa sĂ©rie de casamentos tentativos, com meninas de sua idade ou pouco mais velhas. AtĂ© os quinze anos, mais ou menos, relutam muito em casar, sĂł o fazendo quando nĂŁo há um adulto disponĂvel que possa tirar da casas dos pais uma menina em idade de menstruar. As meninas entĂŁo se mudam para as casinhas dos rapazes. esses ensaios de casamento nĂŁo duram, em geral, mais que algumas poucas semanas.
A partir dos quinze anos, os homens sĂŁo classificados como pira’i oho (“filho grande de gente”), termo que segue descrevendo todos os homens que ainda nĂŁo tĂŞm filhos casados. O segmento mais jovem dessa categoria Ă© turbulento e empreendedor; dele saem numerosos tenotĂŁ mõ de caçadas e expedições de guerra. O segmento mais velho da categoria abriga vários pajĂ©s. Entre os quinze e vinte anos, os homens comprometem-se em casamentos mais sĂ©rios, mas nĂŁo menos instáveis que o dos meninos. Raros sĂŁo aqueles que nĂŁo tiveram pelo menos cinco esposas nessa fase. Eles se casam com moças de sua idade e com mulheres bem mais velhas.
Os homens entre 30 e 50 anos sĂŁo definidos como “maduros” (dayi). Nessa fase Ă© que constituem famĂlia extensa, atraindo genros e saindo da situação uxorilocal. Dali em diante, sĂŁo “velhos” (tapĂŻnĂŁ). Os homens maduros sĂŁo um segmento influente, especialmente quando lĂderes de setores residenciais e quando pajĂ©s.
Os anciões arawetĂ© nĂŁo dispõem de poder especial, mas tampouco sĂŁo marginalizados. Em 1982, os dois homens mais velhos da aldeia ainda caçavam, tinham grandes roças, e famĂlias que os apoiavam. Aya-ro (de uns 70 anos) ainda era um pajĂ© ativo, mas cantava pouco; seus serviços eram mais solicitados para o fechamento do corpo de crianças e casos de mordedura de cobra – operações que nem sempre envolvem a presença dos MaĂŻ. Meñã-no, o outro, já fora “deixado pelos MaĂŻ”, isto Ă©, nĂŁo mais cantava.
As meninas entre os sete e onze anos sĂŁo chamadas de kãñî na’i oho, “mulher-criança”. Muitas delas sĂŁo entregues a um velho ou deficiente fĂsico que nĂŁo consegue arrumar esposa adulta. Esses ‘criam’ as meninas, iniciando-as sexualmente. Uma menina nĂŁo pode menstruar pela primeira vez na casa de seus pais, ou estes morrem de uma doença mĂstica (o ˆha’iwĂŁ) que atinge todo culpado de faltas ligadas Ă sexualidade. Assim, precisam arranjar marido logo. Sustenta-se, por outro lado, que as mulheres sĂł menstruam se previamente defloradas.
As moças prĂ©-pĂşberes nĂŁo devem comer ovos demais, ou terĂŁo partos mĂşltiplos; nem coração de jaboti, veado e outras caças – peças que sangram muito -, ou sua menstruação será abundante e dolorosa. Sua liberdade sexual Ă© considerável, bem como sua capacidade de iniciativa nesses assuntos. Quando ainda meninas, os pais nĂŁo interferem muito. Mas quando vĂŁo-se aproximando da puberdade, o controle sobre seu comportamento aumenta: as moças muito “andadeiras” (iatĂŁ me’e) – aquelas que circulam em bandos alegres Ă noite, Ă procura de diversĂŁo -sĂŁo temidas pelos genros prospectivos; os jovens maridos sĂŁo muito ciumentos de qualquer relação extra-conjugal fora do sistema da amizade apihi-pihĂŁ.
Da puberdade atĂ© os 30, 35 anos, as mulheres estĂŁo na classe das kãñî moko, “mulheres grandes”. Casando-se muito cedo, sĂł vĂŞm entretanto a ter filhos aos 18-20 anos. A mudança de vida apĂłs o nascimento do primeiro filho Ă© muito mais radical para a mulher que para o homem. Ela deixa de ser um apĂŞndice da mĂŁe, e volta-se para a prĂłpria casa; deixa de pertencer ao bando turbulento de moças solteiras, passando a adotar um comportamento reservado e atento Ă s necessidades do filho. De objeto de ciĂşmes do marido, passa a ser quem controla suas aventuras. As “donas de criança”, mesmo jovens, sĂŁo respeitadas por todos, e a balança da autoridade domĂ©stica pende sensivelmente para o lado feminino, apĂłs o primeiro filho.
As mães são muito ciosas de seus filhos, tomando seu partido cegamente, mesmo quando produzem estragos nas posses alheias, ou comportam-se de modo intolerável à paz da aldeia. Por outro lado, sua autoridade sobre as crianças não é muito maior que a dos pais, e ambos estão sempre ocupados em tentar conter os filhos.
Por volta dos 35 anos em diante, as mulheres sĂŁo classificadas como adultas (odĂŻ mo-hi re, “crescidas”), e apĂłs a menopausa como “velhas”. Mulheres de meia-idade possuem enorme influĂŞncia na vida cotidiana. Um setor residencial gira em torno da mulher mais velha, e Ă© normalmente identificado por seu nome. SĂŁo essas mulheres, mais que seus maridos, que disputam o destino pĂłs-marital dos jovens casais.
 Os nomes
Cada indivĂduo recebe um nome algumas semanas apĂłs o nascimento, e o portará atĂ© que lhe nasça o primeiro filho. Esta regra Ă© obrigatĂłria para as mulheres. Os homens podem passar a ser denominados como “X-pihĂŁ”, “companheiro de X (nome da esposa)”, assim que se casam. Quando nasce o primeiro filho ou filha, o casal abandona definitivamente seus nomes de infância e assume outros que fazem referĂŞncia ao nome da criança: “Y-ro” e “Y-hi”, “pai” e “mĂŁe” de y (nome da criança). Assim, por exemplo, o jovem Ă‘apiri casou-se com a moça Kãñî -ti; esta continou a ser chamada de Kãñîti, ele passou a ser conhecido como Kãñî-ti-pihĂŁ. Nasceu-lhes um menino, que recebeu o nome de KaramirĂŁ. O casal passou entĂŁo a ser chamado de KaramirĂŁ-no e KaramirĂŁ-hi; seus nomes de infância nĂŁo podem mais ser pronunciados por quem quer que seja. Depois que nasceu seu segundo filho, a menina Kãñî-paka, os dois podem ser ocasionalmente chamados de Kãñî-paka-ro e Kãñî-paka-hi; mas em geral os pais tendem a ser conhecidos pelo nome do primogĂŞnito, mesmo se ele veio a morrer ainda muito pequeno.
O primeiro filho Ă© nomeado mais rapidamente que os filhos subseqĂĽentes; a escolha de seu nome Ă© objeto de maiores cuidados, e sempre pensa-se no nome que os pais terĂŁo, ao nomear-se a criança. De certa forma, o que se está realmente nomeando sĂŁo os pais: os tecnĂ´nimos (termo que designa esses tipos de nomes pessoais que se referem ao parentesco de ego com outrem) sĂŁo considerados nomes mais ‘prĂłprios’ que os nomes de infância. Uma vez obtidos tais tecnĂ´nimos que marcam o status de adulto (para os ArawetĂ©, ser adulto Ă© ter filhos), os nomes de infância tornam-se “dolorosos de ouvir”. Curiosamente, entretanto, esses nomes podem continuar a ser pronunciados, quando estĂŁo embutidos nos tecnĂ´nimos dos pais: assim, por exemplo, Tapaia-hi Ă© o nome corrente da mĂŁe de IapĂŻ’ĂŻ-do, um homem cujo nome de infância foi Tapaia (jamais pronunciado em sua presença, e talvez desconhecido de todas as pessoas das gerações mais jovens).
A nominação das crianças nĂŁo Ă© objeto de nenhuma cerimĂ´nia especial, e nĂŁo há, como em muitas outras sociedades indĂgenas, nominadores prĂ©-determinados por parentesco. A maioria dos nominadores das crianças sĂŁo pessoas maduras, em geral parentes prĂłximos de um dos pais. O pai e a mĂŁe podem escolher por sua prĂłpria conta os nomes de seus filhos, mas isso Ă© muito raro no caso do primogĂŞnito: ainda jovens, os pais curvam-se Ă opiniĂŁo dos mais velhos, e especialmente dos prĂłprios pais. SĂł há uma regra que deve ser respeitada na escolha do nome: nĂŁo pode haver duas pessoas vivas com o mesmo nome. Isso se aplica ao nomes de infância dos adultos, que mesmo abandonados por eles nĂŁo podem ser conferidos a crianças. Um nome precisa ser, ou novo, ou de alguĂ©m que já morreu.
A onomástica arawetĂ© depende de trĂŞs critĂ©rios. Uma criança pode ser nomeada “conforme um morto do grupo” (pirowi’hĂŁ ne), “conforme uma divindade” (MaĂŻ de), ou “conforme um inimigo” (awĂ® ne). Esses trĂŞs critĂ©rios de nominação nĂŁo devem ser confundidos com as classes a que remetem os nomes. Isso Ă© importante porque a maioria dos nomes arawetĂ© sĂŁo “nomes de deuses” ou “nomes de inimigos”, mas podem ter sido conferidos “conforme um morto”, isto Ă©, a intenção da nominação foi repor em circulação o nome (de origem divina ou inimiga) de um parente morto.
Alguns dos nomes conferidos “conforme um morto” sĂŁo intraduzĂveis; mas muitos tĂŞm significado: nomes de ancestrais mĂticos, de animais (pássaros, quase sempre), de plantas, de objetos, verbos, qualidades… A maior parte dos nomes, porĂ©m, sĂŁo classificados como “nomes de inimigos” ou “nomes de divindades”.
O processo de reposição onomástica efetuado pela nominação “conforme um morto” manifesta uma intenção afetiva e comemorativa. NĂŁo se concebe nenhuma reencarnação de almas via os nomes, nem se transmitem as relações de parentesco do antigo portador do nome para a criança nominada (como ocorre em outros grupos indĂgenas). Um nominador de uma criança escolhe nomes de pessoas que sĂŁo caras a si mesmo ou aos pais do bebĂŞ. Pode haver mais de um morto que portou aquele nome, mas a escolha Ă© feita tendo-se em mente uma pessoa em particular. O que se repõe, ao dar-se um nome de alguĂ©m morto a um bebĂŞ, Ă© uma trĂade, a criança e seus pais. Muitas vezes, o que se visa particularmente Ă© que voltem a existir os X-ro e X-hi, mortos mais presentes na memĂłria do grupo que o X, que pode ser uma criança falecida ainda pequena. Esse critĂ©rio de nominação Ă© o mais freqĂĽentemente usado para a escolha do nome dos primogĂŞnitos, e sĂŁo as mulheres mais velhas ou os homens enquanto chefes de grupos domĂ©sticos (pais e sogros dos pais da criança) que o acionam preferencialmente.
Os nomes dados “conforme um inimigo” tambĂ©m tĂŞm significados variados, mas sĂŁo quase sempre “nomes de inimigos”: nomes pessoais ou tribais de inimigos mĂticos ou histĂłricos (muitos trazidos por mulheres que estiveram cativas entre os KayapĂł), palavras estrangeiras que os ArawetĂ© sabem nada terem a ver com nomes pessoais, metáforas e frases tiradas dos cantos que comemoram a morte de inimigos na guerra… Aqui se incluem vários nomes e expressões em portuguĂŞs (recordemos que os kamarĂŁ sĂŁo classificados como um tipo especial de awĂ®, inimigo). A nominação “conforme um inimigo” Ă© mais freqĂĽentemente acionada pelos homens na qualidade de guerreiros. Em geral, apĂłs um combate com os inimigos, os homens que se distinguiram na guerra sonham com os inimigos mortos a lhes revelarem nomes, utilizados entĂŁo para nomear os recĂ©m-nascidos.
Os nomes dados “conforme uma divindade” refletem o variado panteĂŁo arawetĂ©. Praticamente todos os nomes de deuses celestes e subterrâneos se encontram como nomes pessoais. NĂŁo se usam porĂ©m os nomes dos espĂritos terrestres, malignos. Os nomes “conforme uma divindade” sĂŁo conferidos por homens maduros em sua qualidade de pajĂ©s. Todos os tipos de nome, e critĂ©rios de nominação, podem ter origem em visões dos pajĂ©s, que sonham e cantam Ă noite, extraindo destes sonhos e cantos nomes novos ou antigos. Mas os nomes “conforme uma divindade” sĂŁo invariavelmente conferidos por pajĂ©s.
ApĂłs a morte, uma pessoa Ă© mencionada por seu nome seguido do sufixo -reme, “finado”. Nos cantos dos pajĂ©s que trazem as almas celestes dos mortos Ă terra, estas sĂŁo nomeadas sem este sufixo de “finado”, que conota ausĂŞncia ou distância. Os nomes de infância dos mortos sĂŁo livremente mencionados, longe dos ouvidos de seus parentes prĂłximos.
Ao contrário de outras sociedades indĂgenas brasileiras, onde os nomes marcam posições sociais e papĂ©is cerimoniais, chegando quase a ter a função de tĂtulos, entre os ArawetĂ© os nomes sĂŁo ao mesmo tempo invidualizantes – ninguĂ©m pode trazer o mesmo nome que outra pessoa viva, e muitas sĂŁo as pessoas com nomes que nĂŁo foram usados por ninguĂ©m no passado – e curiosamente ‘impessoais’ e relacionais. Note-se que o nome mais ‘prĂłprio’ de uma pessoa, seu nome de adulto, Ă© um tecnĂ´nimo, isto Ă©, um nome que designa a relação de paternidade que a pessoa tem com outra. A impressĂŁo que me fica Ă© que os ArawetĂ© dĂŁo nomes Ă s crianças para poderem chamar os pais delas pelos tecnĂ´nimos… De outro lado, a onomástica arawetĂ© recorre ao que poderĂamos chamar de exterior da sociedade para obter os nomes: pois os mortos, os inimigos e as divindades representam, sob diferentes aspectos, aquilo que nĂŁo pertence ao mundo dos viventes arawetĂ©, o mundo propriamente humano. Deuses, mortos e inimigos ocupam o espaço exterior do cosmos arawetĂ© – Ă© de lá que vĂŞm os nomes. A identidade de cada arawetĂ©, assim, Ă© determinada pelo exterior da pessoa de mĂşltiplas maneiras: os nomes de infância evocam o exterior da sociedade; os tecnĂ´nimos dos adultos referem-se Ă relação da pessoa com outra.
 Cosmologia e xamanismo

No começo os humanos (bĂŻde) e os deuses (MaĂŻ) moravam todos juntos. Esse era um mundo sem morte e sem trabalho, mas tambĂ©m sem fogo e sem plantas cultivadas. Um dia, insultado por sua esposa humana, o deus AranĂŁmi decidiu abandonar a terra. Acompanhado por seu sobrinho Hehede’a, ele tomou seu chocalho de pajĂ© e começou a cantar e a fumar. Cantando, fez com que o solo de pedra onde estavam subisse Ă s alturas. Assim se formou o firmamento: o cĂ©u que se vĂŞ hoje Ă© o lado de baixo dessa imensa placa de pedra. Junto com AranĂŁmi e seu sobrinho subiram dezenas de outras raças divinas: os MaĂŻ hete, os AwerikĂŁ, MarairĂŁ, Ă‘ĂŁ-MaĂŻ, Tiwawi, AwĂ® Peye, MoropĂŻnĂŁ. Os IwĂŁ PĂŻdĂ® Pa subiram ainda mais alto, formando um segundo cĂ©u, o “cĂ©u vermelho”.
A separação do cĂ©u e da terra causou uma catástrofe. Privada de suas fundações de pedra, a terra se dissolveu sob as águas de um dilĂşvio: o jacarĂ© e a piranha monstruosos devoravam os humanos. Apenas dois homens e uma mulher conseguiram se salvar, subindo num pĂ© de bacaba. Eles sĂŁo os tema ipi, a “origem da rama”: os ancestrais da humanidade atual. Na convulsĂŁo provocada pelo dilĂşvio, alguns MaĂŻÂ procuraram escapar dos monstros afundando na água e criando o mundo inferior, onde habitam hoje, em ilhas de um grande rio subterrâneo.
As marcas da divisão do cosmos estão em toda parte: os morrotes de pedra que pontuam o território araweté são fragmentos do céu que se ergueu; as pedras do igarapé Ipixuna ainda guardam as pegadas dos Maï; as moitas de banana-brava espalhadas na mata são as antigas roças dos deuses, que comiam dessa planta antes de conhecer o milho. As plantas cultivadas e a arte de cozinhar os alimentos foram reveladas aos humanos e aos deuses por um pequeno pássaro vermelho da floresta.
BĂŻde, os humanos, sĂŁo chamados pelos ArawetĂ© de “os abandonados”, os que foram deixados para trás pelos deuses. Tudo que há em nosso mundo do meio Ă© o que foi abandonado; para os cĂ©us foram os maiores animais, as melhores plantas, a mais bela gente – pois os MaĂŻÂ sĂŁo como a gente, porĂ©m mais altos, mais fortes e imponentes. Tudo no cĂ©u Ă© feito de pedra, imperecĂvel e perfeito: as casas, as panelas, os arcos, os machados. A pedra Ă©, para os deuses, maleável como o barro para nĂłs. Lá ninguĂ©m trabalha, pois o milho se planta sozinho, as ferramentas agrĂcolas operam por si mesmas. O mundo celeste Ă© um mundo de caçadas, danças, festas constantes de cauim de milho; seus habitantes estĂŁo sempre esplendidamente pintados de jenipapo, adornados com penas de cotinga e arara, perfumados com a resina da árvore i d;iri’i (Trattinickia rhoifolia).
Mas os MaĂŻÂ sĂŁo, acima de tudo, imunes Ă doença e Ă morte: eles levaram consigo a ciĂŞncia da eterna juventude. O exĂlio dos deuses criou a condição de tudo que Ă© terrestre: a submissĂŁo ao tempo, isto Ă©, o envelhecimento e a morte. Mas, se partilhamos dessa comum condição mortal, distinguimo-nos dos demais habitantes da terra por termos um futuro. Os humanos sĂŁo “aqueles que irĂŁo”, que reencontrarĂŁo os MaĂŻÂ no cĂ©u, apĂłs a morte. A divisĂŁo entre o cĂ©u e a terra nĂŁo Ă© intransponĂvel: os deuses falam com os homens, e os homens estarĂŁo um dia Ă altura dos deuses.
A morte
A relação entre a humanidade e os deuses, os MaĂŻ, Ă© o eixo da religiĂŁo arawetĂ©. Os humanos e os MaĂŻÂ sĂŁo ligados por relações de afinidade – pois as almas dos mortos casam-se com os deuses – e por um sistema ritual de oferendas alimentares. Os MaĂŻÂ podem (e finalmente irĂŁo) aniquilar a terra, fazendo o cĂ©u desmoronar. Toda morte tem como causa final a vontade dos MaĂŻ, que sĂŁo concebidos como, ao mesmo tempo, ArawetĂ© ideais e canibais perigosos. Entre as dezenas de espĂ©cies de MaĂŻ, cuja maioria possui nomes de animais, a mais importante sĂŁo os MaĂŻ hete (“deuses verdadeiros”), que transformam as almas dos mortos em seres imortais, apĂłs uma operação canibal. Há ainda os Añi, seres selváticos e brutais que habitam a superfĂcie terrestre, que invadem as aldeias e devem ser mortos pelos pajĂ©s.
E há o temido IwikatihĂŁÂ (Senhor do Rio), um poderoso espĂrito subaquático que rapta as almas de mulheres e crianças.
Os peye (pajĂ©s ou xamĂŁs) sĂŁo os intermediários entre os humanos e a vasta população sobrenatural do cosmos. Sua atividade mais importante Ă© a condução dos MaĂŻÂ e das almas dos mortos Ă terra, para participar dos banquetes cerimoniais. Esses banquetes cerimoniais sĂŁo festas em que alimentos produzidos coletivamente sĂŁo oferecidos aos visitantes celestes antes de serem consumidos pelos humanos. Os alimentos rituais mais importantes sĂŁo: jabotis, mel, açaĂ, macacos guaribas, peixes e o mingau alcoĂłlico (cauim) de milho. A festa do cauim Ă© o clĂmax da vida ritual arawetĂ©, e combina simbolismos religiosos e guerreiros. O lĂder das danças e cantos que acompanham o consumo do cauim Ă© idealmente um grande guerreiro, que aprendeu as canções da boca dos espĂritos de inimigos mortos.
O canto Ă© o nĂşcleo da vida cerimonial. A “mĂşsica dos deuses” cantada pelos pajĂ©s e a “mĂşsica dos inimigos” cantada pelos guerreiros sĂŁo os dois Ăşnicos gĂŞneros musicais arawetĂ©. Em ambas modalidades de canto, trata-se sempre de ouvir as palavras dos ‘outros’, deuses e inimigos, citadas atravĂ©s de fĂłrmulas retĂłricas muito complexas.
Os mortos sĂŁo enterrados em caminhos abandonados na floresta. A morte divide a pessoa em dois aspectos antagĂ´nicos: um espectro terrestre associado ao corpo e aos espĂritos Añi, e uma alma ou princĂpio vital celeste associado Ă consciĂŞncia e aos MaĂŻ. O espectro assombra os vivos enquanto o corpo se decompõe, atĂ© que retorna Ă aldeia natal do finado e ali desaparece. Uma morte provoca a imediata dispersĂŁo da população da aldeia na floresta, dispersĂŁo que dura o tempo da decomposição do cadáver. A alma celeste Ă© morta e devorada pelos MaĂŻÂ ao chegar ao cĂ©u, sendo entĂŁo ressuscitada mediante um banho mágico que a transforma em um ser divino e eternamente jovem. As almas dos mortos recentes vĂŞm freqĂĽentemente Ă terra nos cantos dos pajĂ©s, falar com os parentes e narrar as delĂcias do AlĂ©m. ApĂłs duas gerações elas cessam seus passeios, pois ninguĂ©m mais na terra recorda-se delas. A condição de guerreiro Ă© a Ăşnica que torna desnecessária a transubstanciação canibal no cĂ©u; os matadores de inimigo, fundidos em espĂrito com suas vĂtimas, gozam de um estatuto pĂłstumo especial.
Os Pajés
Quem passar um tempo entre os ArawetĂ© nĂŁo deixará de se surpreender com o contraste entre a vida diurna e noturna da aldeia. Durante o dia, ‘nada acontece’ – há, Ă© claro, as caçadas e pescarias, as tumultuadas refeições coletivas, as intermináveis conversas nos pátios familiares ao cair da tarde, a eterna faina do algodĂŁo e do milho; mas tudo parece se fazer de um jeito descuidado, ao mesmo tempo errático e monĂłtono, alegre e distraĂdo. Toda noite, porĂ©m, madrugada adentro, ouve-se emergir do silĂŞncio das casas um vozear alto, ora exaltado, ora melancĂłlico, mas sempre austero, solene e Ă s vezes, para ouvidos estrangeiros, algo sinistro. SĂŁo os homens, os pajĂ©s cantando o MaĂŻ marakĂŁ, a mĂşsica dos deuses. Certas noites, trĂŞs ou quatro pajĂ©s cantam ao mesmo tempo, ou sucessivamente, cada um sua prĂłpria visĂŁo – pois tais cantares sĂŁo a narrativa do MaĂŻ de d;ĂŁ, a visĂŁo dos deuses. Ă€s vezes Ă© apenas um: sempre começando por um trautear suave e sussurrado, vai erguendo progressivamente a voz, cuja articulação entrecortada se desenha contra o fundo chiante do chocalho aray, atĂ© atingir um patamar de altura e intensidade que se mantĂ©m por mais de uma hora, para ir entĂŁo lentamente descaindo Ă s primeiras luzes da aurora – a “hora em que a terra se desvela”, como se diz em arawetĂ© – atĂ© retornar ao silĂŞncio. Ocasionalmente (o que significa uma ou duas vezes por semana, para cada pajĂ© em atividade), o clĂmax da canção-visĂŁo traz o pajĂ© para fora de sua casa, atĂ© o pátio. Ali, dança curvado, com o charuto e o aray, batendo fortemente o pĂ© direito no chĂŁo, ofegante, sempre cantando – Ă© a descida Ă terra das divindades e das almas dos mortos, trazidas por ele, o pajĂ©, de sua viagem ao mundo celeste.
Os MaĂŻÂ e os mortos sĂŁo mĂşsica, ou mĂşsicos: marakĂŁ me’e. Seu modo de manifestação essencial Ă© o canto, e seu veĂculo Ă© o peye, pajĂ©. Um pajĂ© Ă© chamado MaĂŻ de ripĂŁ, “suporte das divindades”, ou ha’o we moñîña, “cantador das almas”. NĂŁo há iniciação ou “chamado” formais Ă pajelança. Certos sonhos, se freqĂĽentes, podem indicar uma vocação de pajĂ©, especialmente os sonhos com onças e com a “Coisa-Onça”, um MaĂŻÂ bastante perigoso. Mas mais que alguĂ©m que sonha, um pajĂ© Ă© alguĂ©m que fuma: petĂ® ĂŁ Ă®, “nĂŁo-comedor-de-tabaco”, Ă© o modo usual de se dizer que um homem nĂŁo Ă© pajĂ©. O tabaco Ă© o emblema, o instrumento de fabricação e de operação do pajĂ©. O treinamento para pajĂ© consiste em um longo ciclo de intoxicações por tabaco, atĂ© que o homem mo-kiyaha, “faça-se translĂşcido”, e os deuses “cheguem” atĂ© ele.
O tabaco Ă© onipresente na vida arawetĂ© – homens, mulheres e crianças fumam. Os charutos de 30 cm, feitos de folhas de tabaco secas ao fogo e enroladas em casca da árvore tauari, sĂŁo uma coisa social por excelĂŞncia. O primeiro gesto de recepção a um visitante Ă© a oferta de uma baforada no charuto da casa, aceso expressamente para isso, e apĂłs uma refeição coletiva o charuto corre de mĂŁo em mĂŁo. Jamais se pode recusar um pedido de tabaco, e jamais se fuma sozinho (exceto durante a pajelança – mas aĂ se está a dividir o charuto com os deuses). Mas se todos fumam, apenas alguns homens sĂŁo “comedores de fumo”- os pajĂ©s. A fumaça de tabaco Ă© um dos principais instrumentos terapĂŞuticos dos pajĂ©s: ela Ă© soprada sobre picadas e machucaduras, e tambĂ©m serve para reanimar os desfalecidos. No cĂ©u, os MaĂŻÂ sopram fumo de tabaco sobre os mortos para revivĂŞ-los.
Ao lado do fumo, o emblema principal do pajĂ© Ă© o chocalho aray. Todo homem casado, como vimos, possui um aray. Ele pode ser usado por “nĂŁo-comedores-de-tabaco” como instrumento para pequenas curas, e para acompanhar os cantos noturnos de homens que, mesmo sem serem considerados peye, vĂŞem de vez em quando os MaĂŻÂ em sonho. Isso significa que todo homem adulto Ă© um pouco pajĂ©. Ser peye nĂŁo Ă© um papel social ou uma profissĂŁo, mas uma qualidade ou atributo de todo adulto, que pode ser mais ou menos desenvolvido. Alguns homens realizam tal potencial mais plenamente que outros, e sĂŁo esses que sĂŁo conhecidos como peye.
O aray Ă© o instrumento transformador por excelĂŞncia. “Dentro do aray” ou “por meio do aray” Ă© a explicação lacĂ´nica e auto-evidente para qualquer indagação sobre como, onde e por que se realizam as operações de ressurreição e metamorfose narradas nos mitos, ou o consumo espiritual dos alimentos pelos MaĂŻÂ quando estes vĂŞm Ă terra comer nos festins oferecidos pelos humanos, ou as operações terapĂŞuticas de reassentamento da alma e fechamento do corpo executadas pelos pajĂ©s. O aray Ă© o receptáculo de forças ou entidades espirituais: as almas perdidas de crianças e mulheres sĂŁo trazidas de volta dentro do aray atĂ© a sua sede corporal, por ocasiĂŁo do tratamento chamado imone, freqĂĽentemente realizado pelos pajĂ©s.
Com tal equipamento – tabaco, chocalho -, o pajĂ© arawetĂ© está capacitado a realizar diversas operações de prevenção e cura, que sĂŁo semelhantes Ă s terapĂŞuticas tĂpicas da AmĂ©rica indĂgena: fumigação com tabaco; sopro resfriador; sucção de substâncias ou princĂpios patogĂŞnicos (empregada nas mordidas peçonhentas e na extração das flechas invisĂveis que certos alimentos contĂŞm); e as operações de fechamento do corpo e de recondução da alma. Os maiores pacientes dos pajĂ©s nessas duas Ăşltimas operações sĂŁo as crianças pequenas e as mulheres: as primeiras porque ainda tĂŞm a alma mal-assentada e o corpo aberto; as segundas porque sĂŁo o objeto principal da cobiça dos espĂritos extratores de almas (vários espĂritos terrestres tĂŞm este poder maligno) e dos MaĂŻ.
O pajĂ©, este comedor de fumo e “senhor do aray” (outro modo de se o designar), Ă© um suporte dos MaĂŻ, as divindades que cantam por sua boca. Cantar a “mĂşsica dos deuses” Ă© a atividade mais freqĂĽente dos pajĂ©s, independendo de situações de crise ou de doença. NĂŁo há homem adulto que nĂŁo tenha cantado ao menos uma vez na vida; mas sĂŁo peye apenas aqueles que costumam cantar quase toda noite.
A mĂşsica dos deuses Ă© a área mais complexa da cultura arawetĂ©. Ăšnica fonte de informação sobre o estado atual do cosmos e a situação dos mortos no cĂ©u, ela Ă© o rito central da vida do grupo. “O pajĂ© Ă© como um rádio”, os ArawetĂ© costumavam me explicar. Com isto estĂŁo dizendo que ele Ă© apenas um veĂculo, isto Ă©, que o sujeito da voz que canta está alhures, nĂŁo dentro do pajĂ©. O pajĂ© nĂŁo incorpora as divindades e mortos, ele canta-conta o que ouve destes. Um pajĂ© encena ou representa os deuses e os mortos, mas nĂŁo os encarna: a pajelança arawetĂ© nĂŁo Ă© uma possessĂŁo. Um pajĂ© tem consciĂŞncia do que cantou durante seu ‘transe’, e sabe o que se passa Ă sua volta enquanto está a cantar.
Tipicamente, há três posições enunciativas na música dos deuses: um morto, os Maï, o pajé. O morto é o principal enunciador, transmitindo ao pajé o que disseram os Maï. Mas o que os Maï disseram é quase sempre algo dirigido ao morto ou ao pajé, e referente ao morto, ao pajé ou a eles mesmos. A forma normal da frase é assim uma construção polifônica complexa: o pajé canta algo dito pelos deuses, citado pelo morto, referente a ele pajé, por exemplo. Há construções mais simples, em que o pajé canta o que conversam os deuses a respeito dos humanos em geral, e outras mais intrincadas, onde um morto cita a outro o que uma divindade está dizendo sobre um vivente (que não o pajé) etc.
As músicas dos deuses nada têm de sagradas ou esotéricas. Após terem sido cantadas por um pajé, podem ser repetidas por qualquer pessoa, e muitas vezes viram sucessos populares. Só quem não pode repetir um canto é, precisamente, o pajé que o cantou pela primeira e única vez.