Nos seus dois séculos de contato com os brancos, os Krahô têm vivido reviravoltas e inversões de situação: ora aliados dos fazendeiros, ora por estes massacrados em 1940; nos anos 50 seguiram um profeta que prometia transformá-los em civilizados e em 1986 empenharam-se em uma reivindicação que implicava justamente no oposto, na sua afirmação étnica: foram em 1986 ao Museu Paulista, em busca da recuperação do machado semilunar, caro a suas tradições. Assíduos viajantes às grandes cidades, cujas ruas e autoridades conhecem melhor que os sertanejos que os cercam, com freqüência telefonam a seus esquivos amigos urbanos a pedir miçangas, tecidos e reses para abate, indispensáveis à execução de seus ritos.

Nome

Aldeia Galheiro. Foto: Michel Pellanders, 1988

 

Em 1930 os Krahô indagados pelo etnólogo Curt Nimuendajú traduziram seu nome como “pêlo () de paca (cra)”. Três décadas depois, indivíduos dessa mesma etnia discordavam dessa tradução, afirmando que Krahô era nome de origem civilizada. A forma usual de grafar o nome deste povo, “Krahô”, se deve a uma interpretação inadequada dos sinais diacríticos utilizados por Nimuendajú. Essa forma se difundiu nos textos etnológicos, está presente nos nomes pessoais dos indígenas para uso na sociedade envolvente e até nos títulos dos livros publicados pelos índios; por isso é adotada no presente texto. Ironicamente, a forma “Craô”, mais ajustada à pronúncia, é compatível tanto com a ortografia oficial brasileira quanto com a grafia atualmente utilizada pelos Krahô para escreverem na sua língua.

Os Krahô chamam a si próprios de Mehim, um termo que no passado era provavelmente também aplicado aos membros dos demais povos falantes de sua língua e que viviam conforme a mesma cultura. A esse conjunto de povos se dá o nome de Timbira. Hoje, Mehim é aplicado a membros de qualquer grupo indígena. A esta ampliação correspondeu uma redução do sentido do termo oposto, Cupe(n), que, de não-Timbira, passou a significar civilizado. Os Krahô que vivem mais ao sul também se chamam de Mãkrare (mã = ema, kra = filho, re = diminutivo, “filhos da ema”), termo que pode variar para Mãcamekrá e que aparecia em textos do século XIX como “Macamecrans”. O termo que Curt Nimuendajú ouviu aplicado aos do norte, Quenpokrare (quen = pedra, po = chata, “filhos da pedra chata”), não é tão antigo a ponto de aparecer nos textos do século XIX e também não parece ter perdurado até o presente.

Língua

A língua dos Krahô é a mesma falada pelos demais Timbira que vivem a leste do rio Tocantins. Desta língua, o dialeto mais divergente (quiçá uma outra língua) é o dos Apinayé, os únicos Timbira que vivem a oeste do citado rio. A língua timbira faz parte da família Jê, por sua vez incluída no tronco Macro-jê. Dentro dessa família, a língua mais próxima à Timbira é a Kayapó.

A língua timbira é a primeira que aprendem a falar, mas os rapazes logo dominam o português, pois são os indivíduos do sexo masculino que mais se entrosam com os sertanejos e os que mais viajam. Poucas eram as mulheres adultas que falavam este língua há quarenta anos atrás; mas um número crescente delas o vem fazendo.

Localização

Foto: Vincent Carelli, 1983

 

Os Krahô vivem no nordeste do Estado do Tocantins, na Terra Indígena Kraolândia, situada nos municípios de Goiatins e Itacajá. Fica entre os rios Manoel Alves Grande e Manoel Alves Pequeno, afluentes da margem direita do Tocantins. O cerrado predomina, cortado por estreitas florestas que acompanham os cursos d’água. É mais larga a floresta que acompanha o rio Vermelho, que faz o limite nordeste do território indígena.

 Demografia

Foto: Vincent Carelli, 1983

 

No início do século XIX os Krahô foram estimados em três ou quatro mil. Conforme o censo do missionário Rafael de Taggia, em 1852, tinham caído para 620, após as mortes causadas pelas epidemias de 1849-1850. Talvez sua população tenha chegado a seu ponto mais baixo por volta de 1930, quando Nimuendajú os estimou em 400. Mas em 1948 Harald Schultz calculava que chegavam a 500. Julio Cezar Melatti contou 564 em 1962-3 e pelo menos 632 em 1971, números que incluem mestiços e índios de outras etnias que com eles viviam. Em 1989 os Krahô alcançavam o número de 1.198. Em 1999, os próprios Krahô asseguraram ao pesquisador Hélder Ferreira de Sousa estarem chegando aos número de 2.000 indivíduos. É pois na segunda metade do século XX que sua população volta a crescer.

O número de aldeias também aumentou. No início do século XX elas eram três. Quando Nimuendajú visitou os Krahô em 1930, uma delas já se havia dividido em duas: uma dirigida por Secundo e a outra por Bernardino. Julio Cezar Melatti contou seis aldeias em 1962; somente uma delas não tinha as casas dispostas em círculo: era a do Morro do Boi, então conduzida pelos filhos do já falecido Bernardino, com cônjuges e vizinhos regionais. Atualmente, elas são 18 ou 20, conforme informação do já citado Hélder Ferreira de Sousa, que não visitou todas elas. A divergência se deve ao fato de alguns líderes ligados à associação Càpej (ver adiante) terem estabelecido que um núcleo deve ter um mínimo de 70 habitantes para ser considerado aldeia, embora pelo menos um dos núcleos que eles tomam por aldeia não alcance esse número.

Nos dois últimos séculos os Krahô absorveram membros de várias outras etnias. Dentre os Timbira, incorporaram parte dos Põrekamekrá, que eles haviam combatido, em 1814; sobreviventes Kenkateyê da aldeia Chinela, do sul do Maranhão, destruída por fazendeiros em 1913; alguns migrantes Apinayé, depois de 1923; e alguns Apanyekrá, com cuja aldeia mantêm comunicação de longa data. Dentre os não-Timbira, alguns Xerente que procuraram abrigo junto aos Krahô devido a desavenças internas na primeira metade do século XX. Além disso, há indivíduos Krahô com ascendentes brancos ou negros.

 Histórico do contato

Cerimônia em que reitor da USP devolve aos Krahô a machadinha que se encontrava no Museu Paulista. Foto: Alfredo Rizzuti, 1986

 

Os Krahô começaram o contato com os civilizados no início do século XIX, entrando em conflito com as fazendas de gado que avançavam do Piauí para o sul do Maranhão. Eles então viviam perto do rio Balsas, afluente do Parnaíba. Após atacarem uma grande fazenda em 1809, foram assaltados, em represália, por uma expedição dirigida por Manuel José de Assunção, que fez mais 70 prisioneiros Krahô e os remeteu a São Luís. A partir de então seu contato com os civilizados passa a ser pacífico, mas não com todas as etnias indígenas vizinhas. Aproximando-se da margem do Tocantins, passam a ajudar o fundador de São Pedro de Alcântara (hoje Carolina, no Maranhão), apoiado pelos fazendeiros, a combater e escravizar grupos indígenas vizinhos, que eram vendidos para regiões mais ao norte. Livres dos outros grupos indígenas e agora incomodados pelo roubo de gado que os Krahô lhes faziam, antes atribuído só aos outros, os fazendeiros conseguiram que o missionário capuchinho Frei Rafael de Taggia os transferisse para Pedro Afonso, na confluência do rio do Sono com o Tocantins, em 1848. Aí ficaram, vizinhos aos Xerente, até começarem a deslocar-se, talvez pelo final do século XIX, na direção nordeste, para o lugar onde hoje estão.

Neste lugar tiveram a princípio relações amistosas com um fazendeiro, ao qual protegiam contra rivais e também das onças que atacavam o gado. Crescendo a população sertaneja e fazendo-se sentir o furto de gado dos Krahô sobre os rebanhos, as relações foram se deteriorando, culminando num ataque de três fazendeiros a duas de suas aldeias, em 1940, no qual morreram cerca de 26 indígenas. Comunicado da ocorrência, o governo do Estado Novo pressionou as autoridades estaduais no sentido de se realizar o julgamento dos fazendeiros responsáveis. Apesar de terem cumprido sua pena em liberdade condicional, foi um dos raros casos em que perpetradores de massacres de índios foram condenados. Além disso, o interventor do Estado de Goiás delimitou através de decreto a terra dos Krahô (homologada em 1990 pelo governo federal). E o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) passou a atuar entre eles, com a criação de um posto.

A atuação do SPI junto aos Krahô foi praticamente inoperante: uma sucessão de encarregados de posto sem apoio moral e material, ausência de medicamentos, escola sem professor a maior parte do tempo. Duas fazendas do SPI dentro da reserva não se prestavam ao suprimento regular de carne aos índios, dado o número irrisório de cabeças de gado que mantinham. Nem mesmo arrendamento o posto cobrava aos fazendeiros que punham gado a pastar nas terras indígenas com permissão ou não: entregava esse encargo aos chefes de aldeia, que recebiam uma rês, uma pequena parte da roça plantada com mandioca ou uma ferramenta como tal.

Talvez esse estado de total abandono tenha sido um dos motivos que estimularam o aparecimento de um movimento messiânico entre os Krahô por volta de 1952. Um xamã começou a ter visões em que um homem branco, de barba, se apresentava como Chuva e lhe oferecia o raio para destruir os civilizados. Mas o vidente ficou com medo de apanhar o que lhe era oferecido. Mesmo assim, foi-lhe prometido que em determinada data os civilizados iriam se transformar em índios e os Krahô em civilizados. Para tanto os Krahô tinham de comportar-se de maneira a propiciar a transformação: abandonar as corridas de toras, as pinturas de corpo, fazer bailes como os dos sertanejos, consumir seus animais domésticos. Podiam abandonar o cultivo de suas roças porque seriam criadores e comerciantes, o gado lhes desceria do céu, as mercadorias lhes chegariam numa embarcação. Entretanto, nada do previsto aconteceu e o vidente caiu no descrédito.

De um outro meio se valiam os Krahô para superar o estado de abandono, mas era um recurso muito mais antigo, já aplicado no século XIX: a viagem às cidades grandes e longínquas, cujos moradores, seduzidos por sua aparência exótica e movidos por sentimentos de simpatia por uma minoria que não fazia parte de seu cotidiano, os cobriam de presentes. Viajando em grupos, com poucas ou nenhuma mulher a acompanhá-los, pediam auxílio a prefeitos das cidades pequenas para continuar o percurso, dormiam em quartéis de polícia ou corpo de bombeiros, procuravam igrejas, instituições de caridade, governadores estaduais, gastando meses no trajeto. Assim iam a Belém, São Luís, Teresina, Natal, Recife, Salvador, Goiânia, Rio de Janeiro, São Paulo. Tecidos, ferramentas, miçangas e outros artigos com que voltavam lhes eram em grande parte tomados pelos parentes das esposas. Mas não usufruíam por muito tempo do que haviam conseguido. Como os viajantes haviam perdido alguma etapa importante do ciclo agrícola, tinham de se apoiar na produção de parentes. Desse modo os gêneros alimentícios não duravam até a safra seguinte, obrigando os habitantes da aldeia a trocarem os artigos provenientes das viagens pela mandioca plantada pelos sertanejos.

Coincidindo com a substituição do SPI pela Funai em 1967, mas não exatamente por isso, a situação começa a mudar a partir de então. A pesquisadora Vilma Chiara obteve de uma instituição cerca de 250 cabeças de gado para dar início a uma atividade pecuária administrada pelos próprios Krahô. Alguns anos depois a mesma pesquisadora conseguiu um técnico francês para introduzir técnicas que, sem muito dispêndio, poderiam aumentar a produção de subsistência dos Krahô. E mais tarde também um enfermeiro. Com exceção da atividade deste último, as outras iniciativas não foram bem sucedidas, dados os desencontros iniciais que essas inovações costumam desencadear. Entretanto, elas serviram como uma provocação ao novo órgão indigenista, que se viu na obrigação de mostrar mais efetivamente sua presença, criando um projeto de apoio às roças indígenas, acompanhado de perto por uma equipe. Novos postos foram criados na Terra Indígena. Posteriormente esta atividade foi ampliada pela atuação de uma organização não-governamental, o Centro de Trabalho Indigenista (CTI).

A Guarda Rural Indígena, criada nos primeiros anos de atuação da Funai, recrutou 28 jovens Krahô. Tendo de prestar serviço no posto, os guardas não podiam cuidar das atividades agrícolas. Em compensação, o soldo de um salário mínimo lhes permitia comprar víveres na cantina do posto, à qual compareciam também seus parentes, que debitavam os gastos nas suas contas. Os ritos de curta duração e as aberturas e encerramentos dos longos começaram a ser transferidos para os domingos, dia de folga dos guardas, que assim podiam ajudar nas corridas de toras. Por outro lado, os guardas, tendo pouco a fazer no posto, foram os primeiros a freqüentar com assiduidade a escola e, como dominavam o português, puderam compreender os professores não-indígenas, dando início ao processo de alfabetização dos Krahô. Quando a Guarda foi extinta, enfrentou-se o problema do reaproveitamento de parte de seus membros, que se viram repentinamente privados de seus soldos, como funcionários e professores.

Enfim, a situação deve ter mudado, pois, se em 1952 os Krahô faziam um movimento messiânico para deixarem de ser índios, em 1986 empenharam-se em uma reivindicação que implicava justamente no oposto, na sua afirmação étnica, que foi a exigência de terem de volta o machado de pedra de lâmina semilunar que haviam cedido ao Museu Paulista havia muitos anos. Depois de muita discussão com a direção da Universidade de São Paulo (sob cuja jurisdição está o Museu), debates pelos jornais e resolução de impasses jurídicos, o machado foi devolvido. O interessante de tudo isso é que, para aqueles Krahô que mostraram o machado a Julio Cezar Melatti ao passarem por Brasília, levando-o de volta para a aldeia, ele já não era mais um dos muitos machados arqueológicos que os índios encontravam no chão, pondo-lhes novos cabos, ornamentos e pinturas: ele era o machado por excelência, aquele que no longínquo passado cantava, conforme um de seus mitos, o machado com que haviam matado o chefe dos Cokãmkiere, um povo mítico, conforme outra de suas narrativas.

No que tange às relações intertribais, após terem ajudado os civilizados no combate e escravização de outros grupos, talvez todos timbira, do sul do Maranhão, na segunda década do século XIX, os Krahô foram cogitados como guarda avançada contra um povo mal conhecido imediatamente ao sul, por vezes chamado de Xavante, mas que certamente já se tinha constituído como um ramo à parte, os Xerente. E esse foi outro dos motivos que levaram à sua já citada transferência para Pedro Afonso em 1848. Entretanto, nessa época, os Xerente, também objeto de ação missionária, já não eram mais hostis, e mantiveram relações amistosas com os Krahô. Assim, no começo do século XX, havia alguns indivíduos Xerente casados em aldeias Krahô e vice-versa. Por volta de 1926, desavenças entre índios Xerente, que envolviam acusações de feitiçaria, fizeram com que alguns deles migrassem para os Krahô. Esse conflito teve desdobramentos que levaram à morte dois desses Xerente alguns anos mais tarde, nos quais se envolveram também os Krahô, fazendo estremecer as relações entre suas aldeias setentrionais de Pedra Branca e Pedra Furada. Mas foi entre os Krahô meridionais que parecem ter se concentrado esses Xerente.

Nimuendajú conta de uma expedição Krahô que, em 1923, assaltou uma aldeia Apinayé, tendo-lhe causado apenas danos materiais, uma vez que seus habitantes fugiram a tempo. O motivo dessa incursão foram acusações de feitiçaria contra um Krahô que vivia entre os Apinayé. Vale ressaltar que esse conflito não envolveu todos os Krahô contra todos os Apinayé, mais sim a aldeia de Pedra Furada, dos primeiros, contra a de Gato Preto, dos segundos. Cinco anos depois, o indivíduo que havia sido o pivô do conflito foi morto na aldeia Krahô de Pedra Branca, a qual procurou reativar o intercâmbio amistoso que havia mantido com a aldeia apinayé de Bacaba. Tanto antes como depois desse conflito, indivíduos Apinayé se radicaram entre os Krahô.

Já se disse da incorporação aos Krahô de parte dos Põrekamekrá, na segunda década do século XIX, bem como de sobreviventes da destruição da aldeia kenkateyê em 1913. Os Krahô também têm em seu meio alguns Apanyekrá. Mas vale notar que os filhos de todos esses imigrantes são considerados verdadeiros Krahô.

Esse envolvimento com povos indígenas vizinhos, acabou por permitir aos Krahô alguma forma de articulação política com eles. Mais recentemente, por exemplo, quando os Apinayé estavam com suas terras ameaçadas de invasão pelos civilizados, índios Krahô e Xerente compareceram à região ameaçada para reforçar as posições daqueles.

 Organização social e política

Foto: Vincent Carelli, 1983

 

As aldeias Krahô seguem o ideal timbira da disposição das casas ao longo de uma larga via circular, cada qual ligada por um caminho radial ao pátio central.

Cada casa normalmente abriga as mulheres que ali nasceram e os homens que, deixando as moradas de suas mães, vêm com aquelas se casar. Obviamente, o número de moradores da casa não pode aumentar indefinidamente.

Geralmente, após a morte do sogro, um dos genros fica com a casa, enquanto os demais, acompanhados de suas esposas e filhos, constroem outras ao lado da mais antiga. Isso nos permite distinguir três tipos de grupos de residência, um encaixado no outro. O menor é a família elementar, constituída pelo marido, a esposa e os filhos. É bem visível na hora das refeições, quando se afasta dos demais habitantes da casa para comer, às vezes tirando o alimento de um mesmo prato ou cuia. Também é o grupo que detém um pedaço da roça. As famílias elementares abrigadas pelo mesmo teto constituem o grupo doméstico, coordenado pelo sogro. Alimentos que entram na casa, uma vez preparados, são distribuídos por todos os seus habitantes, não importa que mulher os tenha cozido. Finalmente, uma casa junto com as contíguas a que deu origem constitui um segmento residencial. Se por um lado não tem um líder bem definido, por outro o segmento tem duas marcas que o tornam bem visível: mantém sua posição segundo os pontos cardiais mesmo após a aldeia mudar de lugar e as pessoas que nascem em seu seio não se casam entre si.

Outros grupos são mais visíveis nas atividades rituais, no pátio, fora das casas. É o caso dos vários pares de metades em que podem se dividir os Krahô. A um deles podemos chamar de metades sazonais, pois uma está associada à estação seca (e também ao dia, ao leste, ao pátio central) e a outra à chuvosa (e também à noite, ao oeste, à periferia). As reuniões masculinas diárias realizadas no pátio central são coordenadas por dois “prefeitos”, ambos pertencentes à metade sazonal correspondente à estação em curso. Diz-se que só essa metade toma decisões durante a estação. Cada uma dessas metades dispõe de um conjunto de nomes pessoais; homens e mulheres pertencerão a uma ou à outra de acordo com os nomes pessoais que receberem.

Logo ao deixar a meninice, os rapazinhos da aldeia nascidos mais ou menos na mesma época são reunidos numa classe de idade, sob um nome coletivo, e que é incluída na metade oriental ou ocidental de um outro par. Malgrado essa instituição estar um tanto desorganizada, nota-se que as classes são introduzidas alternadamente em metades opostas e colocadas ao norte do pátio, sendo empurradas para o sul à medida que outras novas são criadas. Essas metades, que podemos chamar de etárias, participam de vários ritos, e outrora também de um rito de iniciação não mais realizado, o Pembjê ou Ikrere. Os “prefeitos” que coordenam as reuniões numa mesma estação devem ser um da metade etária oriental e outro da ocidental.

As metades de um terceiro par reúnem, cada qual, quatro grupos masculinos, que se dispõem no pátio da seguinte forma, de norte para sul: na metade oriental, Corujas, Tatupebas, Urubus e Periquitos-estrela; na ocidental, Raposas, Gaviões, Periquitos e Cupe(n) (não-Timbira ou civilizado). A inclusão em um desses grupos depende do nome pessoal. Eles atuam em um rito de iniciação chamado Ketwayê.

Há outros pares de metades que não têm membros permanentes. Atuam nas diferentes variedades do rito de Pembcahàk e de outros do ciclo da iniciação. A escolha dos membros se faz antes de cada realização do rito a que o par esteja associado. São seis pares. Em cada qual uma metade tem nome de animal alado ou peixe, e a outra de mamífero ou ave terrestre.

As mulheres só se incluem como membros, com o mesmo critério que os homens, nas metades sazonais. Nos outros pares, as solteiras ficam na metade do pai e as casadas, na do marido. Embora os homens sejam os participantes por excelência dos grandes ritos, as metades e o grupo de rapazes em iniciação quase sempre têm uma ou duas moças associadas.

Cada nome pessoal se constitui de uma série de palavras entre cujos significados nem sempre é possível encontrar uma relação imediata. O nome masculino é transmitido pelo tio materno, avós materno e paterno ou outros homens chamados pelo mesmo termo de parentesco; o nome feminino, pela tia paterna, avós paterna e materna e outras mulheres chamadas pelo mesmo termo de parentesco. Por exemplo, um homem chamado Hàká (jibóia) Ihocpej (pintura = ihoc, bonita = pej, isto é, pintura de jibóia) Harecaprec (brejo = hare, vermelho = caprec) deve pertencer à metade da estação das chuvas e ao grupo da praça Urubu; uma mulher chamada Xopê (xo = raposa,  = gorda), Catxêkwôi (catxê = estrela, kwôi = sufixo de nomes femininos) Krôkari (areia) Tetikwôi (tetí = jatobá) deve pertencer à metade da estação seca. Além da afiliação a uma das metades sazonais e a um grupo do rito de Ketwayê, com o nome pessoal o indivíduo ganha o privilégio de encarnar certos personagens rituais e ainda fica ligado por uma amizade altamente formalizada a outros indivíduos portadores de determinados nomes.

Por outro lado, o indivíduo está ligado ao pai, à mãe, irmãos, meio-irmãos e filhos por um laço corpóreo de tal natureza que determinados atos seus (sexo, matar cobra, fumar, falar alto) e o consumo de certos alimentos podem afetar um daqueles parentes que estiver passando por uma crise (período pós-natal, doença, picada de cobra).

Os termos de parentesco Krahô se distribuem sobre a rede genealógica conforme um determinado padrão de tal modo que alguns deles podem figurar em mais de uma geração. É possível a um Krahô aplicar um termo de parentesco a cada outro, desde os parentes mais próximos até alcançar os limites de sua sociedade, seguindo esse padrão, o que não significa que tome a todos como parentes. É possível o casamento com os parentes afastados, o que leva a sobrepor, aos termos antes aplicados, os de afinidade. Outras instituições e costumes também perturbam o padrão terminológico: o chamar parentes distantes que tenham o mesmo nome de parentes próximos pelos termos aplicados a estes, a aplicação do termo especial para amigos formais, a mudança de comportamento para com certos parentes acompanhada do tratamento verbal correspondente.

 Arte e artesanato

Aldeia Galheiro. Foto: Vincent Carelli, 1983

 

A palha é onipresente no cotidiano Krahô. As casas, de duas águas, como as sertanejas, mas sem janelas e com poucas ou nenhuma divisão interna, são cobertas de folhas de palmeira, que também preenche as paredes quando não são de barrote (pau-a-pique). No seu interior vêem-se, dependurados, grande número de cestos de folhas de buriti, de confecção rápida, usados para transporte assim como para guardar alimentos e objetos. Para miudezas há um outro tipo de cesto, feito com fitas da casca lustrosa do talo de buriti, de vários tamanhos, em forma de paralelepípedo com quinas arredondadas, fechado por uma seqüência de nós num cordel. Há também esteiras trançadas com fibra de buriti, com franjas que forram os estrados de troncos de açaí bravo que servem de leito. Para dormir no pátio central, os rapazes usam um outro tipo de esteira, mais simples.

Comum também é o uso da cabaça, como recipiente para água, cuia para servir ou guardar alimentos preparados, pequenas taças de uso ritual e na confecção de alguns instrumentos sonoros: a cabacinha com quatro furos; a buzina, na qual completa o gomo de taquara; no cinto de algodão, sob a forma de sininhos sem badalos que se chocam uns contra os outros, usado na cintura por corredores, amarrado abaixo do joelho ou socado contra o chão pelos cantores.

Foto: Michel Pellanders, 1988

 

Mas o principal instrumento sonoro, o maracá, não é feito de cabaça (planta rasteira cujos frutos se apóiam no chão) e sim de cuité (fruto de uma árvore). Com ele o cantor dirige o canto das mulheres. A música vocal é um dos aspectos mais elaborados da vida ritual e artística dos Krahô.

Urucu, jenipapo e carvão fixado com pau-de-leite são utilizados na pintura de corpo, conforme os padrões relacionados à metade a que está afiliado o usuário. Jovens iniciandos na fase final do rito, pessoas em fim de resguardo usam também penas, de periquito ou gavião, conforme a metade a que pertençam, coladas ao corpo com resina de almécega.

O par de toras para corrida é cuidadosamente confeccionado, geralmente de tronco de buriti, cada vez que a disputa começa fora da aldeia. Elas se realizam após as caçadas, pescarias, trabalhos na roça, quando coletivos. A corrida de toras sempre está ligada a um rito em andamento, de modo que o tamanho, formato e ornamentação das toras devem estar a ele conformes. Cada tora é carregada por um corredor, que deve passá-la a um companheiro da mesma metade.

 Cosmologia, mitos, ritos e xamãs

Foto: Vincent Carelli, 1983

 

São muitos os ritos Krahô. Há os mais breves, relativos às crises individuais (fim de resguardo pelo nascimento do primeiro filho, fim de convalescença, última refeição do falecido), ou promovidos por iniciativas coletivas ocasionais, como trocas de alimentos e serviços. Há os relacionados ao ciclo anual e agrícola, como os que marcam a estação seca e a chuvosa, o plantio e a colheita do milho, a colheita da batata-doce. Há os que fazem parte de um ciclo mais longo que o anual, o da iniciação masculina, que deveriam se suceder numa certa ordem, hoje de difícil reconstituição, inclusive por causa do desaparecimento de um deles.

Vários dos ritos dos ciclos anual e iniciático têm mitos que lhes contam a origem. Mas não há uma correspondência integral entre a seqüência mítica e a ritual, embora, sem dúvida, haja pontos de aproximação.

Os mitos contam as transformações que os atos dos heróis Sol e Lua provocaram no mundo incriado (aparecimento dos seres humanos, da menstruação, da morte, do trabalho, dos insetos que picam, das cobras); a obtenção das plantas agrícolas da mulher-estrela; a aquisição do fogo, tirado ao jaguar; a obtenção de ritos por homens que visitaram o céu, o fundo das águas, a roça em crescimento, enfim, como se toda a cultura Krahô tivesse vindo de fora. Mesmo o xamanismo vem de fora; o primeiro homem que conseguiu poderes mágicos foi o que subiu aos céus, levado pelos urubus, onde foi curado e recebeu poderes do gavião. Ao observador, é difícil encontrar sinais de transe nos curadores Krahô quando atuam, o que pode levá-lo a negar que sejam propriamente xamãs. Mas o relato de cada um deles mostra que foi iniciado como que por um rito de passagem espontâneo, similar ao do homem que subiu ao céu: ficou doente, foi abandonado, foi socorrido por um animal (ou outro ser), foi curado por este, dele recebeu poderes mágicos, testou-os, e foi mandado embora para os seus com os novos poderes.

A partir dos mitos e das opiniões dos Krahô, nem sempre unânimes, pode-se fazer uma idéia de como imaginam o universo: a terra, cercada de água, recoberta pelo céu, que tem seu sustentáculo a leste, onde está também o buraco que faz a comunicação com o mundo subterrâneo.